quarta-feira, 12 de junho de 2013

Vs.

Ontem, uma conversa de circunstância:

"...é, eu adoro cachorros, também. Já tive um Rottweiller. Eu adorava aquele cachorro. Era super dócil. Eu batia o pé e ele corria, fugindo. (...) É, ele foi criado junto de um Pastor Belga. (...)" 
"E eles brincavam muito?"
"É. Mas aí, um dia, o Pastor morreu, e o Rottweiller parece que... não... não sei... ficava uivando pra lua, em noites de lua cheia; tinha vezes que não comia, andava caído. Uma vez ele me mordeu, quando eu estava botando a comida pra ele. Na altura fiquei com raiva dele, e dei ele para a Polícia. (...) 
"Para a polícia? Ah, para cão de guarda?"
"Isso... e um dia eles perderem ele."
"Como?"
"É, eles estavam treinando ele e ele fugiu, não sei. Até hoje eu não sei mais nada dele, não."
"Oupá..."

lembrou-me de uma outra vez, ainda em tempos de miúdo, em que falava com um amigo meu. Na altura, pouco ou nada sabia eu de cães e este meu amigo parecia bem mais informado.

"Sim, lá perto de onde morava dantes, havia uma Dobermann numa vivenda. Aquilo impunha bastante respeito. Ela aparecia à tua frente e tu tremias-te todo. Mas era cómico porque bastava bateres o pé e ela desatava a fugir."
"Caraças... o pior é ter a coragem para fazer a experiência."
"Pois. Essa é que é a cena."

Aquilo que une os dois relatos está bem à vista: a batida do pé e a retirada do cão. Mas o que realmente é comum às duas histórias não é a coincidência da técnica de afugentamento, mas o conjunto de crenças que lhes subjaz. E o mais importante não é a condição isolada ou anedótica das histórias, mas a forma como a mundividência de cada um dos seus intérpretes representa perfeitamente a forma como nós interpretamos o relacionamento entre pessoas e cães, sobretudo no capítulo da agressividade. A importância e amplitude deste tema é tal que abrange tanto o conjunto de pessoas que tem medo de cães quanto a própria comunidade de donos de cães (sendo que, não raras vezes, existe um conjunto de intersecção entre ambos).  É que é justamente a forma antagonista de perceber e lidar com situação de agressividade que leva a que surjam casos tão díspares quanto a fobia de cães, a criação de leis sem fundamento, ou a educação desajustada, ineficaz e perigosa dos nossos cães. Numa palavra: acreditamos que, quando um cão demonstra sinais de agressividade contra uma pessoa, esse cão tem intuitos positivamente agressivos, e é isso que nos faz ter medo de cães, criar leis reaccionárias, e fazer da educação dos nosso cães uma questão de "quem é que manda aqui". 
Quando me refiro a "intuitos positivamente agressivos", falo da forma como achamos que um cão que demonstrou sinais de agressividade é um cão mau, violento, bravo, mas nunca ou raramente nos passa pela cabeça que a motivação tivesse sido medo ou insegurança; falo da forma como acreditamos que um ataque de um cão surge de forma activa e não reactiva. Um cão "positivamente agressivo" é essa figura mitificada que ataca de forma natural e espontânea: o famoso "ataque que veio do nada". 
Ora, se é essa a forma de conceber a natureza canina, é então natural que a forma de lidar com cães passe por [i) medo: "sei lá se aquele cão que vai ali na trela com aquele senhor não me vai atacar... deixa lá trocar de passeio"; (ii) reactividade legal: "os cães da raça X atacaram e mataram crianças, logo, a raça é perigosa"; ou (iii) superiorização hierárquica: "se eu não mostrar quem manda, um dia este cão ainda me come" .
Em breve, irei tratar de cada um desses casos em específico (o aversão a cães, a questão das leis versando sobre agressividade canina, e gelatinosa e perturbante noção de liderança na educação de cães). Para já, gostava apenas de apelar a uma coisa: por favor, comecem a ponderar rever a forma como interpretam os cães e se relacionam com eles. Deixem de antagonizar tanto com os cães, e façam um esforço para começar a olhar na mesma direcção. Para isso é preciso compreendê-los melhor. 
O primeiro passo a dar parece-me passar por uma inversão completa da questão. Em vez de interpretarmos os comportamentos agressivos dos cães como espontaneamente activos, e de nos remetermos a um papel secundário de reacção perante um comportamento inevitável, por que não levar a sério a hipótese de tais comportamentos não passarem de insegurança reactiva, e assumir um papel activo na sua prevenção?




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