sexta-feira, 14 de junho de 2013

Nerd

«Teve 18? Oh, 'tá bem, mas ela mata-se a estudar. De valor é o Ricardo, que estudou duas horas na véspera e sacou um 14». 

Este tipo de mentalidade é de esperar quando se tem uns 13 ou 14 anos. Todos nós passámos por esta fase em que o fixe é arranjar uma forma de colocar o tempo de estudo e os resultados numa relação de proporcionalidade inversa. É natural. Mas o natural seria também que essa fase passasse à medida que a adolescência fosse dando lugar à idade adulta, e o desejável seria que o tempo de estudo e dedicação a um tema fosse definido em função de um gosto e de uma apetência para esse mesmo tema, e os resultados não fossem senão uma consequência do processo (e não uma variável). 
Mas não, essa atitude de conseguir o mais possível fazendo o menos possível mantém-se ao longo da maturidade. E, por extensão, a mesmíssima perspectiva infantil acerca da actividade de estudar arrasta-se e perpetua-se: se alguém estuda na sua área profissional, ok, tudo bem, está a ser pago para isso; mas se o faz em regime amador, então é tão nerd quanto era no secundário.

Este espírito é transversal a todas as áreas e, inevitavelmente, afecta também a comunidade de donos de cães. "Ler livros sobre o tema, procurar recursos com fundamento científico, recorrer a profissionais, isso é coisa de nerd. Elaborar um conjunto de ideias acerca de um problema, isso é paleio teórico. O que é importante é a prática, e essa tenho-a todos os dias com os meus cães." Talvez as pessoas pensem isto da forma mais conscientemente honesta e benevolente. Mas a verdade é que, bem lá no fundo, esta é uma ideia que vem do imberbe preguiçoso que ainda habita no nosso interior; na verdade, o que tudo aquilo quer dizer é que "tenho mais o que fazer do que andar a aprender sobre comportamento canino, logo eu que já tenho cães desde criança". Eu convivo com os meus dentes há mais de trinta anos e isso não faz de mim dentista. Tudo bem que posso ter as minhas opiniões e discordâncias com o senhor da broca na mão; mas se quero argumentar com ele é bom que tenha um conjunto de ideias bem fundamentadas em estudo prévio para lhos atirar. Não posso nunca achar que sei de ciência médica dentária apenas porque sou portador de 32 exemplares do seu objecto de estudo. É uma arrogância enorme acharmos que a nossa convivência com cães é suficiente para atestar as nossas opiniões acerca de comportamento canino. Estabelecer vínculos íntimos com cães sempre foi e é uma excelente forma de ir aprendendo sobre eles. E ninguém é obrigado a aprofundar os seus conhecimentos de outra forma qualquer. Mas quando alguém quer fundamentar uma ideia de teor universal e assertivo com base apenas na convivência com os seus cães, aí a coisa é bem diferente. 

O que aquela admiradora do Ricardo não percebia é que para se estudar alguma coisa por mais do que "duas horas na véspera" é preciso paixão pelo tema e inteligência para compreendê-lo. 
No mundo dos cães, tanto quanto no mundo académico ou noutro qualquer, nada é pior do que quando a ignorância é exibida com orgulho: "não preciso ler o que os outros pensam para ter as minhas próprias ideias". Na verdade, o que isto quer dizer é que "não compreendo o que os outros dizem, por isso vou criar um conjunto de ideias próprias". Invariavelmente, este "conjunto de ideias próprias" não é senão uma versão personalizada de ideias que circulam no ar e na rua. É assim que se formam as mitologias urbanas.


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