domingo, 1 de setembro de 2013

Aprendizagem contínua e reforços diferenciais

Mas, então, que outra forma de abordar a educação dos nossos cães existe? Que alternativa ao paradigma de "ensinar" o cão até saber um comando?

A aprendizagem tem de ser contínua. Não deveria haver sequer dúvidas em perceber o alcance desta ideia. Quando achamos que o cão já sabe isto ou aquilo, deixamos de providenciar boas consequências para o comportamento, e este, com o tempo, acaba por se extinguir. Afinal, não é justamente o processo que faz com que os maus comportamentos se extingam? Não é justamente por deixarmos de fornecer boas consequências para o mau comportamento que este se vai apagando? Pois bem, o mesmo se passa com os bons comportamentos. Se os tomarmos como garantidos e não continuarmos a fornecer boas consequências para eles, esses bons comportamentos vão desaparecendo, ou, pelo menos, vão perdendo solidez.
E não é só isso. Como se vem defendendo ao longo dos textos do Abacaxi, ensinar o nosso cão é a melhor forma de comunicarmos e de nos relacionarmos com ele. Ensinar um cão é estimulá-lo; é dar-lhe cada vez maior intimidade com a linguagem dos seus donos; é tornar a sua vida repleta de novidades; é enriquecer o ambiente em que ele vive. Mesmo quando nos limitamos a "cuidar" de um cão, sem, aparentemente, lhe estar a ensinar nada em concreto, a verdade é que estamos continuamente a transmitir-lhes informações. Quer queiramos, quer não, os nossos cães estão em permanente aprendizagem. Sendo assim, não faz sentido não nos integrarmos, activamente, nesse processo de aprendizagem.

Claro que isto em nada contradiz o paradigma do "o meu cão já sabe sentar". Quem segue essa linha de educação do seu cão pode sempre seguir para novos comportamentos, depois de já ter "adquirido" um outro. Pode sempre ir acumulando novos e novos comportamentos. 
Mas quando falo em aprendizagem contínua, refiro-me também, e sobretudo, à aprendizagem de um só comportamento. E isto qualquer pessoa compreende. Ensinem o vosso cão a ladrar ao comando; e, assim que ele começar a responder, passem dois anos sem praticar o comando. Depois peçam-no novamente como se o tivessem ensinado ontem. Por certo ele não responderá, ou, no melhor dos cenários, responderá com enormes dificuldades. Ou seja, toda a gente sabe que é preciso ir praticando os comportamento (pretensamente) adquiridos.
Mas existe uma enorme diferença de atitudes e de efeitos entre (i) praticar um comportamento adquirido e (ii) manter o processo de aprendizagem em contínuo. Desde logo, como já dissemos nesta semana, quando assumimos um determinado comportamento como adquirido, reagimos de forma muito mais "reactiva" quando o cão não responde ao pedido. Mas não só. Muitas vezes, descuramos as consequências para os comportamentos. Um exemplo. Treinamos o nosso cão a responder à chamada. Despendemos vários meses a solidificar o comportamento. Até ao dia em que, contabilizando, o comportamento atinge um grau satisfatório para o dono. Bom, o que se segue? O comportamento é dado como adquirido, então, o dono limita-se a chamar o cão, sem fornecer consequências adequadas. O dono chama, o cão vem, e o dono nada faz de especial (quando muito, lá sai uma festinha ou uma palavra afectuosa). E porquê? Justamente, porque o comportamento é interpretado como sendo adquirido. Pouco tempo depois, todavia, aquilo que se considerara adquirido demonstra ser muito frágil e volátil; em outras palavras, o cão deixa de responder à chamada. Simplesmente, não podemos deixar de fornecer consequências positivas para os comportamentos desejados. E isto implica uma difícil mudança de paradigma na forma de encarar a educação dos nossos cães; implica pôr de lado a ideia de comportamentos adquiridos, e enveredar por uma educação contínua.
Só que, claro, não podemos manter o mesmo tipo de feedback para empre. Não podemos usar sempre as mesmas recompensas, e não deveremos recompensar sempre um comportamento que consideramos "entranhado". Se recompensarmos sempre que o nosso cão se senta, e se o fizermos sempre da mesma forma, não só estaremos a tornar todo o procedimento previsível e monótono, como estamos a selar a sentença para que esse comportamento fique completamente estagnado. E quando um comportamento estagna, isso não significa que se solidifique e se mantenha fiável; significa que as motivações para esse comportamento deixarão de ter significado. 
Como resolver este aparente paradoxo? Como ultrapassar a aparente contradição que há entre (i) termos de dar constante e contínuo feedback aos comportamentos dos nossos cães e (ii) não podermos recompensar um comportamento para sempre, indefinidamente? De facto, à primeira vista parece mesmo haver uma incompatibilidade entre as duas "exigências". A chave para a resolução do problema está na noção de diferencial. Como se sabe, os sinais de que uma dada economia local está "de boa saúde" num determinado momento não têm a ver com a riqueza gerada em termos absolutos, mas em termos relativos, isto é, têm a ver com o crescimento que houve em comparação com um outro momento determinado. Da mesma forma, para que haja produção de energia, é necessário que haja um diferencial de potências entre dois pólos. Quando um professor fica entusiasmado quando um seu aluno sobe de um 13 para um 16, e fica desapontado quando um outro desce de um 18 para um 16, tudo isto faz imenso sentido, e tem a ver com a lógica diferencial: não importa tanto o conhecimento e as capacidades adquiridos que um aluno demonstrou num determinado dia; importa sim acompanhar e promover a evolução desse aluno, gerando níveis de motivação que o levem a manter-se interessado. 
Na aprendizagem dos nossos cães, a coisa não é distinta. Manter um cão motivado e fazê-lo entrar num processo de aprendizagem contínua implica que adoptemos a lógica diferencial para a comunicação que encetamos com os nossos cães. Assim, em vez de estipularmos um ponto definido que, uma vez atingido, significaria que o nosso cão "saberia", em termos de aquisição, um determinado comportamento, talvez fosse preferível inventar novas formas de melhorar o comportamento. Se o nosso cão já senta em casa sem distracções, aumentamos as distracções. Se já senta com distracções, repetimos os exercícios fora de casa. E depois incluímos distracções. E depois aumentamos as distracções. E depois aumentamos a distância a que proferimos a deixa verbal. E depois aumentamos ainda mais. E depois pedimos que o nosso cão permaneça sentado durante mais dois segundos do que o normal. E depois mais quatro. E depois mais distância. E ainda mais segundos... e mais distracções. Depois, integramos o 'senta' numa série de comportamentos diferentes, e recompensamos apenas a série de comportamentos, e não apenas o comportamento isolado. Depois variamos a série, e modificamos a sequência, tornando-a imprevisível. E depois... e depois... O que importa é que estipulemos uma regra essencial para a educação do nosso cão: a regra do n+1. Por cada patamar n que atinjamos, haverá sempre um superior a atingir. 
Assim, vemos que a aprendizagem contínua não significa aprendizagem estável; em ordem a manter a aprendizagem num processo contínuo, é necessário providenciar consequências diferenciais. Deste modo, é possível estipular formas de avaliar o comportamento do nosso cão segundo parâmetros distintos do "sabe ou não sabe": tais parâmetros são "melhor do que a média, igual à média, inferior à média". Se um cão obteve desempenho das últimas vezes, o objectivo no próximo exercício será que ele atinja x+1, isto é, um melhor desempenho. É a isto que se refere Ian Dunbar quando fala de reforços diferenciais: quando o nosso cão tem um desempenho igual ao normal, não vale a pena recompensar com algo superior a uma simples palavra de apreço, uma espécie de "gesto de cortesia" que dê a saber ao nosso cão que reparamos e agradecemos o comportamento, mas sem fazer dessa resposta o máximo que o nosso cão nos poderá dar; quando o nosso cão tem um desempenho melhor do que o normal, aí sim, reforçamos significativamente! Sendo que este "melhor do que o normal" em breve se tornará "o normal", e deixará de ser reforçado dessa forma: o reforço significativo surge apenas quando surge o +1, isto é, o melhor do que a média
No fundo, usamos a mesmíssima lógica que toda a gente usa para recompensar um cão quando começa a aprender um comportamento. Reforçamos quando ele tem o comportamento correcto para que ele se torne "a norma". A diferença é que não estabelecemos um ponto final no processo de aprendizagem. Mantemos esse processo para sempre, reforçando os comportamentos melhores do que a média e nunca dando como adquirido e solidificado um comportamento. Não conheço forma melhor de manter um comportamento activo e um cão motivado para o realizar.
Outra regra de ouro. Tudo isto pode soar a algo muito desgastante, para o dono e especialmente para o cão. Tudo isto pode parecer uma forma de forçar os nossos cães a tarefas indesejadas por eles. Não tenho dúvidas de que todo este discurso parecerá, para muitos, um exagero ou mesmo um certo abuso. Em relação a essas reticências possíveis, eu relembro que, mediante este processo de aprendizagem contínua com reforços diferencias, nunca obrigamos o cão a nada. Na verdade, é justamente a melhor forma que conheço de evitar recorrer a formas de aprendizagem "forçada" ou "por obrigação". Trata-se simplesmente de manter o cão motivado. Haverá cães cuja evolução seja mais lenta, e cuja motivação seja mais difícil. Tudo bem. Já se sabe que todo o processo terá de ser adaptado a cada cão. Mas isso não muda uma vírgula à forma geral do processo. Haverá cães que levarão uma vida toda a alcançar um patamar inicial de dificuldade, e haverá outros para os quais o grande desafio consiste em imaginar níveis de dificuldade cada vez maior. Mas nenhum cão pode ser considerado inapto para cumprir um plano de aprendizagem de tipo n+1. A regra a adoptar deverá ser sempre, então, usar o treino como forma de motivar a continuidade do treino, e nunca forçar nada. 

A grande vantagem deste método, já a referi: acabam-se as desculpas para se iniciar a fase dos castigos premeditados, acabam-se os pretextos para encetar a fase da "pressão activa", acaba-se o ressentimento perante os cães que, pretensamente, já sabem um comportamento só que, do alto da sua "teimosia", insistem em não cumprir. Numa palavra, acabam-se as razões para mantermos uma relação conflituosa com os nossos cães, e sublinham-se os motivos para fortificar uma relação baseada na cooperação. 
Muitas vezes ouvimos falar numa inevitabilidade de uma fase de pressão, na qual o cão deverá conhecer um certo nível de obrigação. Isto talvez seja legítimo se estivermos num esquema de treino que estipule um determinado comportamento como adquirido (os tais 80% ou 90%). Aí, como se dá um determinado comportamento como adquirido, torna-se muito difícil ultrapassar a fasquia a que se chegou, desde logo porque o nível de recompensas já não consegue motivar mais o cão. Então, torna-se necessário iniciar uma nova fase de "motivações", agora baseadas em castigos e pressões.
Mas, mediante o tipo de treino a que vimos denominando como n+1, ou diferencial, essa fase de pressões e castigos torna-se desnecessária. Por definição, desnecessária. Ao aumentarmos a fasquia do desempenho, o cão permanece motivado para realizar os comportamentos. Esta é a grande diferença.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Sentar? mas o que significa sentar?

«Ai, que grande que ele está. Já tem quê, 6 anos?»
«Oito, o Pedro já tem oito anos.»
«Oito?! Como o tempo passa...»
«É.»
«Mas então, já anda, quê?, no terceiro ano? Então já sabe ler, certo?»
«Sim, já.»
«Pronto. Tenho aqui uma cópia da Odisseia, queres que ta empreste para leres agora nas férias?»
«Não, obrigado.»
«Pedro! Não ligue, ele é muito teimoso... »


Lá porque um cão senta lá em casa, sem distracções por perto, e quando ouviu um barulho muito parecido com o que faz o saco de ração quando é aberto, isso não quer dizer que ele esteja preparado para se sentar num jardim, com 15 cães a correr em liberdade e um lago de patos ali à frente. Numa fase inicial, o cão poderá já responder bem ao comando 'senta' na cozinha, mas ainda ter alguma dificuldade em fazê-lo na sala, onde o piso é completamente diferente, por exemplo. Qualquer cão já poderá sentar perfeitamente numa situação de exercício ou treino, na qual ele se encontra altamente motivado e concentrado; mas esse mesmo cão poderá não sentar à primeira (nem à segunda, nem à terceira...) se tiver com os olhos e nariz postos noutro motivo de interesse qualquer. Para evitar este desfasamento entre diferentes situações, é preciso treinar adequadamente. Mas a questão é que não podemos inferir que o "cão sabe sentar" só porque já responde a esse comando em circunstâncias definidas. 
Então, a pergunta que se coloca é: quando é que podemos afirmar que o cão já sabe sentar? A resposta que eu prefiro já foi dada no texto anterior: essa não é uma boa questão. É infrutífero e até perigoso estabelecer este tipo de parâmetros e perguntas baseadas em "saber se o cão já sabe" isto ou aquilo. Se o cão já senta, em casa, 80% das vezes, mas apenas 20% das vezes na rua, que valor é que poderíamos dar, no cômputo geral, à resposta ao comando 'senta'? Que factor atribuir a cada um dos contextos? E se os 20% das vezes que se senta na rua tiver um grande diferencial entre vezes que se senta à noite e de manhã, entre as vezes que se senta num jardim, ou no passeio à frente de casa, etc.? Que valores podemos dar? Obviamente, este tipo de quantificação é absolutamente vago e inconsequente. Independentemente da boa vontade que esteja por detrás de afirmações do tipo "o meu cão já responde à chamada em 70% das vezes", a verdade é que este tipo de quantificação serve apenas como pretexto para que se inicie a fase das correcções, ou, como se costuma dizer pelo "meio", a fase da pressão. Tudo para polir os pontos percentuais que faltam para os 100. 
Tal como é muito diferente ler o texto do manual de leitura do 3.º ano e ler 600 páginas de um clássico literário, também é muito diferente para um cão responder a um comando dentro de casa ou num parque cheio de distracções. A questão, parece-me, passa por não estipular nenhum ponto definido que, uma vez atingido, nos permitisse dizer que o cão "já sabe" o comando em causa. Em vez disso, o aconselhável é pegar no que já se conseguiu transmitir e ensinar, e elevar a fasquia. Manter vivo e dinâmico o processo de aprendizagem do nosso cão. Em vez de assumir que o cão já sabe o comando e, a partir daí, começar a pressioná-lo para "melhorar" as suas respostas, penso ser preferível não cair nesse tipo de assunções e continuar o processo de educação. As pressões tornam-se desnecessárias, só é preciso saber motivar. Se se usou um tipo de motivação dito positivo para se chegar ao ponto dos tais - ilusórios - 80% de respostas, por que razão começar, a partir daí, um jogo de pressões e obrigações? Por que não manter o registo das motivações positivas para melhorar, e melhorar, e continuar a melhorar? Só mediante este método é que podemos entregar ao cão os limites da sua aprendizagem. Mediante o método que combina uma primeira fase de motivação com uma segunda fase de pressão (na qual o cão aprende a responder "por obrigação"), corre-se, entre outros, o sério risco de nos perdermos e deixar de distinguir os limites do próprio cão; isto porque, se estabelecemos os tais 80% como ponto de viragem no tipo de método usado, começa a tornar-se difícil reconhecer quando é que o cão já atingiu os seus limites, e quando já só está a responder por compulsão de escape (tradução livre para Escape and Avoidance Conditioning), ou seja, quando o cão já só responde pelo seu mecanismo que o faz evitar ou fugir de elementos de pressão stressante. 

A falta de necessidade da fase de pressões e obrigações começa na vagueza e ilusão em que consiste o pretenso ponto ideal a partir do qual poderíamos dizer que um cão sabe o que se lhe está a pedir. Uma vez mais: este é um fraco modelo para lidarmos com o comportamento de um cão. Nós podemos avaliar o nosso conhecimento de certas coisas em termos de saber. Mas na nossa espécie é possível avaliar um aspecto tão singular como o conhecimento independentemente da componente comportamento; isto é, avaliar o que sei sobre um determinado tema não implica nada, ou praticamente nada que se possa denominar comportamento. O mesmo não se passa com os nossos cães. Neles, há comportamento. E pronto. Logo, o que há, não é "saber ou não saber", mas motivação. Pura e simples motivação para o comportamento. O segredo de treinar um cão está na construção de uma paleta variada de formas de motivação, da qual poderemos sempre retirar uma que nos dê jeito numa determinada situação, e uma outra que nos dê jeito numa situação diferente. Com o tempo, é totalmente conveniente que desta paleta faça parte o nosso tom de voz. Com duas cláusulas: que saibamos revestir o nosso tom de voz de uma força motivacional normalmente associada a consequências naturalmente motivantes; e que essa forma de motivação seja apenas uma entre várias outras. 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Saber? mas o que significa saber?

Seria muito melhor se apagássemos esta palavra do nosso reportório de termos relativos à educação de cães. É muito pantanoso o terreno daquilo que um cão sabe e não sabe; nunca se sabe muito bem o que é que eles sabem, nem sabemos sequer se essa é uma forma fiel de representar o modo cognitivo de um cão. Saber? Hm, prefiro concentrar-me no comportamento, especificamente no comportamento.
É claro que podemos usar o termo 'saber' de forma lata, mesmo mantendo todas as interrogações que levantámos. Mas a questão é que o facto de lidarmos com o comportamento dos cães em termos de saber e não saber leva-nos a pontos que são tudo menos benéficos na nossa relação com eles. Leva-nos, por exemplo a moldar o tipo de castigos que usamos. Por exemplo, quando "achamos" que o nosso cão não sabe muito bem o que fazer, e faz algo de inconveniente, usamos formas de castigo mais leves (castigos positivos brandos, como time-outs ou repreensões brandas), ou limitamo-nos a interromper o comportamento inadequado (castigo negativo); mas quando "achamos" que o cão já sabe o que pretendemos e, ainda assim, faz algo inapropriado, a nossa tendência é ver nesse comportamento uma certa forma de desrespeito, e respondemos à altura, intensificando o castigo.
Ora, o problema em tudo isto é que a eficácia do castigo (única razão pela qual um castigo deve sequer existir) é subtilmente substituída por uma questão de justiça. Isto é, em vez de usarmos o castigo como forma simples de comunicar com o nosso cão e fazer com que o comportamento inadequado deixe de ocorrer no futuro (questão prática e de eficácia), passamos a usar o castigo como forma de estabelecer um certo equilíbrio justiceiro (questão moral e de ressentimento), do tipo: "ele sabe que está a proceder mal, logo, tem de sofrer consequências». E isto estende-se até à primeira fase de aprendizagem: num ápice, as razões pelas quais não estamos a castigar os nossos cães nas primeiras fases de aprendizagem também se tornaram razões de ordem moralista e de justiça: "oh, coitadinho, ele ainda não sabe".
Quando moralizamos a educação dos nossos cães e a envolvemos em preceitos justiceiros, estamos a antropomorfizar os nossos cães. É curioso que apenas se pense na humanização dos cães quando os donos os enchem de mimos e os sobre-protegem (muitas vezes, isto pouco ou nada tem de antropomórfico); mas, na verdade, há tanta ou mais humanização de cães na forma como eles são castigados...
Posto isto, o primeiro conselho ou afirmação de posição desta semana será o seguinte: deixe cair a preocupação em definir se o seu cão sabe ou não o comportamento em causa; não que seja uma falsa questão, mas é algo que não traz benefícios, e levanta perigos potenciais. Em vez de pensar em termos de "será que o meu cão sabe isto?", pense em termos de aperfeiçoamento contínuo do comportamento. Qual a importância de saber se o seu cão sabe o comportamento X comparada com a importância de treinar, repetir e aperfeiçoar esse comportamento?
O maior dos perigos em pensar em termos de "saber ou não saber" consiste na estipulação de um ponto ideal no qual o cão atinge esse "saber", e a partir do qual qualquer falha é vista como desobediência e já não como ingenuidade. Tal como se pretenderá ilustrar no próximo texto, esse ponto que determina o "saber" de um determinado comportamento é uma enorme ilusão, essa baliza é uma completa ficção. O pior é que é uma ficção que vai originar consequências bem reais.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

... e depois começam os castigos

«Em primeiro lugar, começamos por treinar os nossos cães apenas com recurso a recompensas. Esta é a fase em que ensinamos os comportamentos»
«Certo...»
«Depois, certificamo-nos de que o cão sabe o comportamento, isto é, certificamo-nos de que ele sabe o que o nosso comando quer dizer»
«Hm..., e quando é que isso acontece?»
«Quando o cão já responde a 80% dos comandos.»
«Hm,... e depois?»
«Aí começamos um trabalho de correcção do mau comportamento.»
 
Por esta altura, eu arriscaria dizer que o caro leitor estará à espera que nos concentremos nesta última afirmação. A expectativa criada na epígrafe levá-lo-á a pensar que este texto tratará da questão da correcção do mau comportamento, e da sua necessidade ou falta dela. Bom, de certa maneira, sim, podemos dizer que as correcções estarão na baila, mas apenas em modo residual.
O problema naquele diálogo epigráfico não reside na aplicação dos castigos correctivos, mas na afirmação que antecede essa aplicação e que a justifica. O problema de que se vai tratar está na ideia de que existe um momento determinado em que o cão sabe o comportamento. Melhor ainda, o problema está na interpretação dos 20% de falhas de resposta como demonstrações de desobediência. Numa palavra: vamos falar do grande equívoco que reside na ideia de que, quando um cão já responde a um número significativo de vezes a um comando, ele já sabe o que se pretende dele, e vamos falar no consequente, e ainda maior, equívoco de que sempre que o cão não responde ao comando que, pretensamente, já sabe, ele estará a entrar num incumprimento ou em desobediência.
 
Quatro notas prévias, que ajudarão a dar maior precisão ao intuito de todo este texto: (i) um treinador ou amador cultivado que segue um modelo como aquele exemplificado no texto epigráfico tem o mérito de conhecer e saber aplicar a lei geral de aprendizagem a treino do seu cão (basicamente, conhecer e saber aplicar a lei básica de que o comportamento é moldado em função do tipo de consequências que lhe seguem com mais frequência); (ii) um treinador ou amador cultivado que segue esse modelo de treino tem o segundo mérito de seguir um esquema educativo do cão no qual estabelece um ambiente propício para situações de treino, e não se limita a ir educando o seu cão à medida que os dias vão passando e os problemas surgindo; (iii) não se pretende, de todo, insinuar sequer que não se deve corrigir o mau comportamento; e (iv) o tipo de correcção aplicada administrada àqueles 20% de "falhanços" tanto pode ir do mero castigo negativo ou da repreensão verbal, até ao esticão mais rude de estranguladora, passando por formas leves de "time-outs" ou choques eléctricos de intensidade reduzida. Não interessa. O problema não são os castigos; o problema não está na conclusão de que teremos de passar a uma fase de castigos ou de pressão. O problema está na premissa que motiva essa conclusão: o problema está na ideia de que um cão sabe o que se espera dele quando atinge uma determinada taxa de sucesso na resposta a um determinado pedido/comando, e que quando a resposta não surge (ou surge de forma desajustada), o cão simplesmente está a desrespeitar, de alguma forma, a indicação que lhe foi dada. E essa conclusão, já a vi ser elaborada tanto por treinadores que usam predominantemente formas de castigos como motivação para o treino, quanto por treinadores especialmente concentrados nas recompensas.
 
É por isso que considero urgente recuar um passo no raciocínio, e analisar séria e criticamente aquela premissa que nos dirige para esta conclusão precipitada. É preciso questionar o que é isso de o cão "saber" um comportamento, e compreender os potenciais perigos desta ilação. É isso que se tentará fazer aqui no abacaxi ao longo desta semana.

sábado, 24 de agosto de 2013

Imagine, uma vez mais

Imagine, hoje, que tinha um cão que era um candidato a ser cão de assistência. Tal cão cumpria todos os requisitos exigidos com a excepção feita para a forma como se relacionava com outros cães. Para passar num eventual teste que lhe conferiria o estatuto desejado, faltar-lhe-ia dar provas de que seria capaz de lidar com a presença próxima de outros cães. Mas, para já, tratava-se de um cão reactivo perante cães estranhos.
Posto isto, decide contratar os serviços de um profissional que ajudasse o caro leitor a tornar o seu imaginário cão num cão amigável para os outros cães.
Agora imagine que todo o trabalho realizado nesse sentido consiste numa única sessão na qual o seu cão seria levado para junto de um grupo de dezenas de outros cães, sem qualquer apresentação ou exposição gradual. Imagine que nessa sessão, previsivelmente, o cão imaginário permanece absolutamente tenso de princípio ao fim e, eventualmente, chega mesmo a haver uma escaramuça com um dos outros cães.
Por fim, imagine que o teste decisivo para o seu cão se tornar um cão de assistência consistia em levá-lo para um ambiente de lojas comerciais, onde já havia provado ter um comportamento exemplar. Sem surpresas, o seu cão passa o teste. O treinador imaginário que havia contratado declara o caso como extremamente bem sucedido.
 
Ora, como é que reagiria o caro leitor perante esta situação?
 
Concordaria com o profissional, e acharia que todo o caso havia sido bem trabalhado e teria chegado a fins bem sucedidos?
Ou acharia que o seu cão continuava com o mesmíssimo problema que tinha no início do processo?
 


quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Que horas são?

«Bom, depois de sair de casa, tanto faz demorar 15 minutos como duas horas; o seu cão não notará diferença.»
«Ai, sim? Mas então porquê?»
«É que os cães não têm percepção do tempo.»
«Ah...»

O que é mais espantoso neste diálogo nem é a falsidade da afirmação acerca da percepção do tempo que os cães têm ou deixam de ter; o mais espantoso é a forma como esta e outras afirmações são feitas sem qualquer tipo de fundamento adequado. 
A última vez que ouvi alguém dizer que os cães não têm percepção do tempo, perguntei à pessoa se baseava essa afirmação em algum dado minimamente fundamentado, se tinha lido isso em algum lado; a resposta foi qualquer coisa como:

«...eu não preciso de ler nada; quando falo não é com base no que leio, mas com base na experiência que tenho com os meus cães.»

Isto, quanto a mim, reproduz com extrema fidelidade a razão que leva à formação de grande parte dos mitos relativos à educação de cães. As pessoas universalizam aquilo que é e só pode ser relativo e particular; as pessoas elevam à qualidade de lei aquilo que obtêm na própria experiência. As consequências são muito graves.
Não há nada de mal em dizermos que "todos os meus cães" preferiram frango a salsicha; tudo bem. Outra coisa bem diferente é dizermos que, normalmente, "todos os cães" preferem frango a salsicha. Este tipo de afirmação a tender para o universal e de teor objectivo só pode resultar de estudos controlados e rigorosos; não pode, nunca, basear-se num conjunto muito limitado de experiências, muito menos quando essas experiências não obedecem a uma só exigência de cientificidade. 
Quando, numa discussão acerca de comportamento de cães, se introduzem conteúdos científicos e se apela a uma atitude crítica, normalmente é-se acusado de arrogância e esterilidade. Ora, arrogante é aquele que ambiciona formar um tipo de conhecimento dispensando aquilo que os outros têm para dizer, nomeadamente quando o outro é o corpo da ciência. Estéril é o diálogo entre dois indivíduos que baseiam as ideias que debatem no que "sempre ouviram dizer". Uma coisa é desconhecermos alguma coisa, de forma inocente, e incorrermos em certos enganos por causa desse desconhecimento: não há mal nenhum; fazemo-lo a toda a hora, a respeito de qualquer tema. Outra coisa bem diferente é construirmos uma série de "conhecimentos" sobre um tema com base numa arrogante insistência em não querer saber o que é que a ciência realmente diz acerca desse tema. Podemos até discordar do que é dito no discurso científico; não podemos é dar-nos ao luxo de ignorá-lo e achar que sabemos tudo. E, já agora, para discordar desse discurso, convém que me apoie numa base sólida e crítica. Convirá que me informe. Tal como já disse neste blog: não é por ter um convívio diário com os meus dentes há já muitos anos que posso ambicionar ter conhecimento acerca da ciência dentária...

Mas, e então, os cães têm ou não percepção do tempo?

Se, em vez de cedermos à tentação de ir na corrente do diz-que-disse-com-ares-de-pensamento-contra-corrente, puséssemos realmente o nosso espírito crítico a funcionar, facilmente concluiríamos que, muito provavelmente, algum tipo de percepção diferencial do tempo os cães deverão ter. Se os cães não tivessem, de todo, percepção do tempo, não haveria todos estes vídeos de cães que ficam em êxtase quando se reencontram com os seus donos que partiram e estiveram ausentes durante meses. Se não tivessem qualquer tipo de percepção do tempo, não haveria dificuldade em deixar os nossos cães em casa por longos períodos, e não haveria cães com ansiedade por separação. Deixar um cão sozinho por cinco minutos e deixá-lo por quatro horas não é a mesma coisa, e ninguém com o mínimo de sensatez poderá negá-lo. Quanto mais não fosse, as necessidades físicas de urinar, defecar e alimentar-se dariam ao cão algum tipo de impressão da duração e da passagem do tempo. 
Mas se o espírito crítico do caro leitor estiver enferrujado, e precisar de mais dados acerca do tema, então vejamos. Patricia McConnell dedica um "post" do seu precioso "blog" a este tema. Nele, menciona-se um estudo elaborado por Therese Rehn e Lindsay Keeling no qual se reuniu uma amostra cientificamente significativa de cães que foram deixados sozinhos em casa por períodos de 30 minutos, 2 horas e 4 horas. Entre outras conclusões, descobriu-se que a diferença da reacção dos cães à chegada dos respectivos donos varia muito quando eles estão sozinhos apenas por 30 minutos e quando a ausência dos donos é de duas horas. Curiosamente, a reacção não difere, em termos práticos, das duas para as quatro horas de ausência. Ora, 30 minutos, claramente, não são o mesmo que duas horas. E como interpretar a indistinção nas reacções que os cães tiveram quando deixados sozinhos 2 horas e quando deixados sozinhos 4 horas? Podemos ter aqui uma certa prova de que a percepção do tempo que os cães têm é diferente da nossa; mas será que as nossas reacções são assim tão diferentes quando alguém que amamos demorou 2 horas ou 4 horas a voltar? 
Bom, que as percepções do tempo que nós temos e aquela que os cães têm serão muito provavelmente diferentes, é algo que todos nós aceitaremos quase sem pensar. Afinal, mesmo dentro de culturas diferentes da espécie humana, a percepção do tempo é tida como sendo diferente. Por que não o haveria de ser entre membros de espécies diferentes? Mas o facto de os cães terem percepção do tempo diferente da dos humanos não significa, de todo, que não tenha qualquer tipo de percepção do tempo.


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Centrão, quinta e última parte

«...pois é, e também não podemos nunca estar por debaixo deles, senão eles pensam que mandam lá em casa».

Os meus olhos deverão ter saído das órbitas quando me voltei para ver qual o genial proferidor de não menos genial afirmação, e reparei que o mesmo era nada mais nada menos do que dono de um Dogue Alemão. As dificuldades por que aquela família não deve passar... apertar atacadores e apanhar coisas do chão estão absolutamente fora de questão. Pelo menos com o cão por perto. E imagino a altura em que as camas e sofás não estarão!

Ora bem, este último dos textos dedicados à ideologia do meio-termo vai incidir sobre as práticas concretas que fazem com que um dono se estabeleça como alfa e não como outra letra qualquer. 90% das vezes que este discurso é proferido, ele é revestido por uma essencial vagueza. Tudo é uma questão de se ser líder da matilha; mas tanto o que é isso do líder da matilha quanto a forma como um dono chega a tal ascético pedestal permanecem numa irremediável vagueza de explicações. Temos de ser calmos; temos de ser assertivos; temos de emanar uma energia de líder; temos de manter uma postura corporal de líder. Bom, a menos que o caro leitor seja fã de livros de auto-ajuda espiritual e navegue pelas hordas da New Age, estou certo de que a única reacção que estas expressões lhe sugerirão serão um valente bocejo de desprezo. Vago. Vago. Vago. E vago. Tais directrizes não querem dizer absolutamente nada de concreto.
E quando pedimos para que este discurso seja mais concreto, que brilhantes são as pérolas com que nos brindam.

Para tentar manter a seriedade no tema, recorramos à fonte que, apesar de tudo, ainda merece respeito na forma crítica, sistemática e frontal como tenta abordar o assunto do treino de cães (embora nem sempre o consiga).
Segundo o sistema Leerburg, um líder de matilha tem de comer sempre antes dos outros membros. Esta é uma das leis mais firmes e conhecidas desta "ideologia". Tanta e tanta gente pensa e pratica esta lei. O que acontece quando o líder da matilha não tem fome, mas já são horas de dar a comida ao canito? O líder da matilha entafulha-se com uma sandes improvisada só para manter a mensagem para o seu cão? Ou chegam umas bolachitas de água e sal? Um copo de água certamente não será suficiente, mas e se tiver umas vitaminas, será que o cão já considerará que está a comer depois do seu líder? Ou poderemos estar a cair no gravíssimo perigo de o nosso cão perceber que, afinal de contas, ele é que é o líder? O líder da pessoa que acabou de lhe dar a comida, note-se... E então o que acontece nas famílias que têm horários diferentes? Todos os membros da família devem estar acima do cão na hierarquia, certo? Então devem comer todos ao mesmo tempo, e o cão depois? Mas e quando um dos elementos não está? O filho que foi jantar fora, ou a filha que está em casa de uma amiga... Eles jantam por skype, para que o cão tenha a certeza que come depois deles? (Curiosamente, Ed Frawley resolve este problema facilmente: o resto da família não é líder do cão; só ele. Eu pergunto: ora, se só um membro da família é o líder, e se ser o líder da matilha é condição exclusiva para que o cão não se torne num feroz canino dominante, então não será agressiva e dominantemente que esse cão irá interagir com o resto da família?)
Outra coisa curiosa: o sistema Leerburg defende o "crate training" como forma de limitar as liberdades iniciais do cão ou cachorro que chega a nossa casa; e a forma de fazê-lo passa por alimentar o cão de cada vez que o queremos colocar lá dentro. Partindo do princípio que o cão não vai passar 7 ou 8 horas metido numa caixa-transportadora, ele vai entrar e sair várias vezes da "crate" ao longo do dia. Ora, imagine a quantidade de lanches que o caro leitor não vai ter de fazer para comer sempre antes do seu cão...

Uma outra lei: "não deixar ninguém fazer festas ou dar guloseimas ao meu cão; eu, enquanto líder, sou o único que o farei". Portanto, basicamente a ideia é eu ser o líder do meu cão por ausência de concorrência. Pelo sim pelo não, mais vale não deixar ninguém interagir com o meu cão, não vá ele gostar mais desse completo estranho que nunca viu na vida do que de mim. Isto é um líder firme e seguro? Epá, isto, no meu dicionário, é o sinal mais evidente de extrema insegurança.
A ideia, diz Frawley, é fazer do dono o centro do universo do cão. Isto até pode resultar sem problemas graves no caso de treinadores de cães e de outros que dedicam a quase totalidade do seu tempo para o seu cão. Mas para o resto dos comuns e mortais donos de cães, as horas diárias que o cão compartilha com o seu dono não são assim tantas; achar que uma pessoa que trabalha 7 horas por dia, dorme outras 7, ainda perde 2 horas em viagens, e ainda tem de fazer compras, levar e trazer o filho da escola vai ser o centro do universo do seu cão é sentença certa para que a vida e o ambiente desse cão sejam extremamente pobres. O donocentrismo é uma condição maligna de que muitos cães padecem; e muitos donos também. O mundo do seu cão não começa e acaba no dono - e ainda bem. Um cão com medo do camião do lixo não está a reflectir nenhuma insegurança do dono. O cão não é uma extensão do dono. Tem personalidade própria; tem gostos próprios; tem medos próprios. O dono pode é ajudar o cão a lidar com tudo isso. Mas não como se ele fosse uma extensão sua.
Impedir que o seu cão seja acariciado por estranhos, além de idiota em si própria, é uma ideia que vai resultar num cão muito mal socializado num futuro próximo. Depois quando o vosso cão morder a mão de uma pessoa que se aproximar, não estranhem... Nem reclamem: foi tudo a bem de se constituírem como o centro do universo do vosso cão. Haja boas prioridades.

Uma terceira, e mais conhecida lei: nunca deixar o cão passar primeiro nas portas. Frawley, tal como tantos outros, afirma que passar primeiro nas portas «embora possa parecer insignificante para nós, é coisa muito importante para um cão em termos de respeito». Eu pergunto: mas o que é que fornece tanta certeza a esta afirmação? Por que razão podemos afirmar que isto de passar em primeiro pelas portas é tão importante para um cão "em termos de respeito"? Este tipo de afirmações não se pode fazer sem que, pelo menos, haja acesso à contra-prova, ou seja, haja acesso ao comportamento que têm os cães que passam primeiro nas portas. Deduzindo que o próprio Frawley nunca tenha deixado os seus cães passar primeiro nas portas, para não correr o risco de ter de lidar, daí em diante, com um Führer de quatro patas lá por casa, eu de boa vontade poderei apontar alguns exemplares que passam nas portas primeiro que os donos, nomeadamente o meu próprio cão. Deixar um cão passar primeiro nas portas pode ser problemático ou mesmo perigoso; mas não por uma qualquer razão nebulosa ou mística. Se um cão sai disparado quando abrimos a porta de casa, isso pode causar problemas. Mas esses problemas estão directamente relacionados com a saída disparada pela porta fora; não tem nenhuma repercussão com uma pretensa relação hierárquica. Se o dono pretende algum rigor ou disciplina à porta, então ensine o seu cão a sentar e a esperar que o dono dê um sinal que permita que o cão passe na porta. Simples e directo.
Além de infundado e particularmente lunático, este princípio não é cumprido por ninguém. Desculpem lá, mas eu não acredito que alguém, quando chega a casa e tira a trela ao seu cão, ande sempre à frente deste quando ele vai beber água à cozinha. "Ups, o Faísca entrou na sala, e eu ainda estou no corredor; é melhor esperar um ou dois minutos antes de entrar na sala, senão ele pode achar que eu estou a entrar depois dele, e começa a achar que é o líder". Aliás, o próprio Ed Frawley não cumpre esta "lei": neste vídeo, no mínuto 3'42'', Frawley passa pela porta ao mesmo tempo que o seu cão (qual será a lição do cão?... será que estão empatados no grande campeonato da liderança alfa?), mas, logo a seguir, o cão passa muito primeiro pelo portão do exterior. Será que esta lei é apenas válida para as portas do interior? Ou será que aquele tipo de porta também conta e, a partir daquele dia, o Snickers se tornou o líder lá de casa?

Não nos podemos esquecer daquela que é provavelmente a mais clássica das leis da liderança de matilhas. Nos passeios, devemos sempre andar à frente ou, quando muito, ao lado dos nossos cães. Nunca atrás. Ou seja, os cães cujos donos praticam Canicross são sempre os líderes da matilha...
Aliás, o que é que determina a liderança? Se um cão passear 20% do tempo já pensará que é o líder? E se for 10%? "olha, neste momento o cão vai à sua frente, está a pensar que é o líder... olha, olha, agora não, já não pensa que é o líder...". 

Depois, claro, a lei das altitudes (ponto 8), exemplificada na epígrafe deste post. Diz esta "lei" que o líder, «enquanto humano, nunca deverá colocar-se a si próprio numa altura igual ou inferior à do cão». Eu juro que cada vez mais acredito que os inventores destas leis não vivem nem nunca viveram com um cão. Durante um dia inteiro, vai haver uma ou outra altura em que o dono vai ter de se baixar. "oh querida, tira lá o bolinhas aqui da sala, porque eu vou ter de apanhar as pilhas do comando que foram para debaixo do sofá". Mas o que é que esta gente acha que se passa dentro da cabeça de um cão? "uh la la, queres-me ver esta agora? O meu dono (ou melhor, ex-dono) está ali deitado no chão... então não é que eu sou o novo líder desta casa? As coisas vão mudar a partir de agora.. oh, não, o meu dono já se levantou, já não sou o líder... oh, calma, ele baixou-se outra vez, voltei a ser, oh, já voltei a ser um cão, novamente... foi bom enquanto durou". Enfim.

Por fim, o jogo do sério (ponto 2). Segundo esta lei, devemos olhar directamente nos olhos do nosso cão e ser os últimos a desviar o olhar; deve ser o cão a desviar o olhar em primeiro lugar. Basicamente, vamos jogar ao sério com o nosso cão. Quem ganhar é o líder. De quem é a mente infantil que inventa estas regras? Por que não alargar o espectro dos jogos? Fazer uma espécie de olimpíadas da matilha; o vencedor sagra-se o líder da matilha. Podemos começar por jogar à sardinha; depois, as escondidinhas, a apanhada, e não esquecer o jogo do lencinho. Tudo menos o Tug-of-war (ponto 18); isso é que não; se o cão ganhar, meu deus, aí ele fica a achar que é o super-alfa lá do prédio. Já agora, se este pessoal divertido se entretivesse a estudar comportamento canino em vez de andar a inventar coisas, iria saber o que significa o olhar fixo nos olhos de um cão: é um sinal invasivo e ameaçador. Quando olhar para o seu cão olhos nos olhos, fixamente e prolongadamente, não está a dizer-lhe "eu sou o teu líder"; está a dizer-lhe "eu sou uma ameaça". É essa a mensagem que quer transmitir para o seu cão? Não?, então não perca o tempo com baboseiras de revistinha e leia sobre comportamento canino real. O seu cão agradecerá.

A lista poderia continuar quase indefinidamente. Basta a imaginação querer. Se a mentalidade dos nossos cães fosse tal que se predispusesse a analisar cada um dos nossos actos como sinais de liderança ou submissão, eu colocaria aqui a questão pertinente que Jerry Seinfeld colocou já há cerca de 20 anos: como é que os nossos cães, esses seres hierárquicos e sempre atentos aos nossos sinais de liderança, verão a forma como nós apanhamos os cocós? Não parece uma atitude lá muito de líder da matilha andar com saquinhos a apanhar os serviços que os nossos cães fazem, pois não? Além disso, não conheço nenhum cão ou lobo que ande a apanhar os cocós dos seus "seguidores". Espero não estar aqui a dar ideias; não tarda, algum dos cultores da ideologia da matilha ainda se lembra de divulgar na sua igreja que apanhar cocós dos cães é sinal de submissão, e pronto, lá vão as nossas cidades voltar a ficar apinhadas de dejectos. Tudo a bem da estrutura da matilha!

Aquilo que é importante a reter é o seguinte: nunca, ninguém, em circunstância alguma conseguiu dar uma indicação concreta, sensata e com sentido de como é que o dono se estabelece enquanto líder da matilha. Nunca. Quando alguém fala nisto do líder da matilha, normalmente o discurso versa sobre medidas e ideias absolutamente vagas: transmissão de energias, estar calmo e assertivo, ter mentalidade de líder, etc. E quando se pede por algo mais concreto, algo que se possa, realmente, fazer, invariavelmente o discurso vai parar a este tipo de preceitos absolutamente absurdos e infundados. Comer primeiro do que o cão não vai ter absolutamente nenhum reflexo no resto dos comportamentos desse mesmo cão. Se quer que o seu cão preste mais atenção naquilo que lhe diz, trabalhe esse aspecto em específico. Se quer que o seu cão não puxe a andar à trela, trabalhe esse aspecto em específico. Se quer que o seu cão não ladre tanto, trabalhe esse aspecto em específico. A resposta é sempre treino. Não há outra hipótese, por muito atractivos e encantadores que sejam os discursos que promovem essas alternativas holísticas. 

O grande problema destas propostas é a sua incoerência lógica. Qual é o objectivo: ter um cão que obedeça ao seu dono. Como fazer: o dono estabelece-se como líder. Como é que se estabelece como líder: fazendo o cão obedecer. Ou seja: temos de dar sinais de liderança para sermos o líder para que o cão obedeça. E que tal ensinar ao cão qual é o comportamento pretendido? Quer que o seu cão sente quando lhe diz para sentar? Então ensine-o a sentar. Simples e directo. 
"Ah, mas o meu cão sabe sentar; só que não senta sempre; eu quero que ele sente sempre que eu lhe digo, e para isso, é preciso que ele saiba que eu sou o líder". Não, se o seu cão apenas senta de vez em quando, então não sabe "sentar"; não foi bem ensinado. O problema não está no facto de o seu cão não o ver como líder; o problema está no facto de lhe ter ensinado mal. Uma criança que saiba escrever, não saberá, necessariamente, compor um texto de duas páginas sem erros e com sentido. E se ela não o sabe não é por desrespeito aos pais ou aos professores; é porque ainda não aprendeu a fazê-lo. Para um cão, 'sentar' é o mesmo que 'escrever': sentar na sala, sem distracções e enquanto o dono lhe promete um biscoito é fácil, é como uma criança escrever o próprio nome. Mas sentar num parque com 20 cães à volta, isso já é coisa parecida a escrever um ensaio literário. Logo porque sei escrever, não quer dizer que consiga escrever um conto; logo porque um cão saiba sentar, não quer dizer que seja capaz de sentar em qualquer circunstância. Não é uma questão de liderança ou de respeito: é uma questão de treino. 
Já chega de desculpas para não treinar o seu cão. 

domingo, 4 de agosto de 2013

Centrão, quarta parte


«Se quisermos um verdadeiro cão obediente e equilibrado, não basta ensinar-lhe comandos e comportamentos; temos de nos afirmar como o líder da matilha; o nosso cão tem de nos ver como o seu líder.»
«Mas, se quando eu digo "senta", ele senta, e quando eu digo "aqui", ele vem, isso não significa já que o meu cão responde aos meus pedidos?»
«Errr, sim, ou melhor, ..., não. Na verdade ele pode só estar a responder por interesse. Convém que, paralelamente, se estabeleça uma hierarquia bem definida em que o dono se assuma como líder alfa»
«Mas se ele responde aos meus comandos, como é que o meu cão poderá achar que está acima de mim na hierarquia?»
«Ele pode não responder em outras situações.»
«E não deveríamos treinar também essas situações de modo a que ele passe a responder também nessas?»
«Sim, mas ele só vai responder verdadeiramente se nos reconhecer com líder.»
«Então, ele reconhece-me como líder nas coisas em que me responde, mas não me reconhece nas coisas a que não responde? Isso não significa apenas que houve coisas que já treinámos e outras que não?»
«Como assim?»
«Se o meu cão responde quando eu digo "senta", isso não significa que ele já me reconhece como líder?»
«Não, se ele responder apenas por interesse.»
«Então, se não é por interesse, de que outro modo é que o meu cão deve responder aos meus pedidos? Pela força?»
«Não, não! Um verdadeiro líder nunca ou raramente usa a força.»
«Então usa o quê?»
«Respeito.»
«Ah, então todas essas estranguladoras são para... impor respeito?»
«Err, sim, se necessário.»
«Estou a ver, estou a ver. Mas então que passos concretos é que temos de dar para nos afirmarmos como líder.»
«Ouça lá, quem é o especialista, aqui? Quer o senhor queira, quer não, os cães têm necessidade de viver numa estrutura na qual exista um líder; se nós não nos assumirmos como o líder, assumem os cães.»
«Bom, não vamos perder tempo. O que é que vamos fazer hoje?»
«Vamos trabalhar a chamada...»

  • Treino vs. comportamento equilibrado
A meu ver, hoje irá ser abordado um dos maiores e mais melindrosos mitos que se tem espalhado pelas cabeças de quem se envolve na educação dos seus cães. É extraordinariamente comum ouvirem-se diálogos como o da epígrafe deste texto. É muito frequente ouvirmos pessoas a dizer coisas como "Oh, não quero que o meu cão saiba uma série de coisas, não quero ensinar-lhe uma bateria de comandos e truques. O que quero é que ele se comporte bem e que me respeite". 
É um facto que existem vários cães que têm um conjunto significativo de truques e comportamentos complexos no seu repertório, mas que, em contrapartida, acumulam alguns problemas comportamentais. Não são poucos os cães com forte desempenho em obediência competitiva e com problemas como, por exemplo, ansiedade por separação; cães que intercalam sessões inteiras de resposta a pedidos de comportamentos complexos com demonstrações de agressividade perante outros cães. Isto é bem verdade. Mas não podemos tomar estes factos como premissas para concluir que treinar um cão é coisa distinta de dar estrutura e equilíbrio ao seu comportamento. Numa palavra, há uma ideia muito enraizada de que uma coisa é ensinar o cão a sentar, a deitar e a dar a patinha, e outra bem diferente é ter um cão que respeite o dono quanto dono, e que se saiba comportar em casa e na rua. 
Trata-se de uma ideia tanto mais enraizada que ela é não é apenas difundida por entre os comuns donos de cães. Não; ela é também difundida por especialistas de comportamento, por treinadores profissionais. Tal ideia chega mesmo a ser o slogan de alguns destes profissionais. O objectivo de hoje do Abacaxi é desconstruir esta ideia desde a sua base; demonstrar o seu ridículo e a sua falta de fundamentação: numa palavra, o objectivo é esclarecer, do modo mais definitivo possível, em que é que consiste o treino de cães e o quão importante e insubstituível ele é para que a relação dos cães com os seus donos seja a melhor possível.
Voltemos ao texto de que nos temos servido para exemplificar os princípios da ideologia do meio-termo no treino de cães. Nesse texto, Ed Frawley escreve uma frase que se torna bastante emblemática acerca da forma como o próprio encara a educação de cães: «A maioria dos problemas comportamentais surge como resultado de uma fraca estrutura de matilha no ambiente em que o cão vive. Por essa razão, nós dizemos às pessoas que treino de obediência representa apenas 25% da solução para corrigir problemas comportamentais, e 75% da solução tem a ver com o estabelecimento de uma sã estrutura de matilha». Não importa tanto notar qual o relevo e quais os valores que Ed Frawley concede ao treino e à estrutura de matilha; o que importa é que é feita uma separação entre as duas coisa. Conforme veremos de seguida, não existem duas coisas. Tudo é uma questão de treino, e treino é educação. Toda a história de um estabelecimento de hierarquia estrutural é uma invenção, uma grande invenção. Vejamos aquilo em que Ed Frawley baseia a sua ideia de estabelecimento de uma estrutura de matilha, e veremos se existem ou não razões para fazer uma distinção entre isso e o treino de cães.

Diz Ed que, «quando a pergunta se relaciona com a forma de criar um vínculo, ganhar respeito e ser capaz de manter a liderança em relação aos nossos cães, a resposta é ter a certeza de que o cão compreende que nós seremos sempre justos para com ele. Assim sendo, o cão tem a responsabilidade de responder perante coisas que já conhece, e, se ele recusar, irá haver consequências».
Bom. Isto não se difere em nada do princípio básico do treino de cães. Pode haver alguma variação nos termos escolhidos (eu, por exemplo, preferiria não usar "recusa" ou mesmo "responsabilidade") , mas, em termos basilares, esta é uma forma de definir o princípio básico do treino: não esperar coisas que ainda não ensinámos; providenciar consequências ajustadas para o comportamento ocorrido. Isto é treino. Ponto. Até aqui, ainda não se vê qualquer razão para distinguir treino de estabelecimento de liderança e respeito. Até aqui, a coisa parece ser uma e uma só. Mas pode ser que mais para a frente haja uma distinção real das coisas. Vejamos.

«Ao longo da experiência ganha em treino, nós demonstramos ao cão que apenas vamos pedir-lhe coisas que ele saiba fazer. Quando ele faz algo correctamente, nós fazemos sempre algo de bom para eles. Da mesma forma, quando ele faz algo incorrecto, nós deixamos-lhe SEMPRE claro que ele cometeu um erro».
Hm, pois, continuamos no mesmo ponto. Isto não é outra coisa senão treino. Pura e simplesmente treino. Aprender segundo as consequências é a ideia mais básica da lei da aprendizagem, fundada nos princípios do condicionamento operante. Usar esses princípios para ensinar o nosso cão alguma coisa (seja 'sentar', 'ladrar', 'dar a pata', subir ou descer do sofá, esperar pela comida, não saltar para as visitas, qualquer coisa) é treino. Não adianta vestir a coisa de palavras diferentes, chamar-lhe estrutura de matilha ou o diabo a quatro. Isto é treino. Ponto. Até agora, ainda não há razões para criar qualquer tipo de folclore em torno de uma figura mitificada - o dono alfa. Mas pode ser que ainda haja. Continuemos em busca desses princípios concretos que justifiquem a existência dessa estrutura de matilha e desse líder da matilha.

«O cão deve aprender que nós somos 100% consistentes na forma e no momento em que administramos correcções. Ser consistentes a toda a hora é uma das componentes mais importantes de se ser um líder da matilha. Por exemplo, nós não podemos ignorar um comportamento agressivo perante um convidado em nossa casa e, depois, corrigir o nosso cão quando ele for agressivo durante um passeio.» Ou seja, temos de providenciar sempre o mesmo tipo de consequências para o mesmo tipo de comportamentos. De outra forma, o nosso cão terá mais dificuldades em compreender o que esperamos dele; terá mais dificuldades em compreender-nos. Mais uma vez, estamos perante um princípio básico de treino. Um bom treinador sabe que deve controlar as consequências dos comportamentos dos cães de modo a agilizar a sua aprendizagem. Consequências distintas para o mesmo comportamento fazem emperrar a aprendizagem, a educação e a comunicação do nosso cão. Isto é, pura e simplesmente, uma questão de treino. Continua a não haver razões para criar uma realidade paralela ao treino, pois o treino continua a compreender esta esfera da aprendizagem e do comportamento canino. Será que haverá alguma razão para aceitarmos a divisão feita inicialmente? Continuemos na nossa demanda.

Ed Frawley continua: «Durante praticamente toda a minha vida de adulto eu treinei cães de protecção e cães de serviço policial. Comecei a estudar trabalho de protecção em 1974. Os meus cães aprenderam que a única altura em que lhes era permitido ser agressivos era quando eu lhes dizia que tal era OK ou quando eu era atacado. Ao longo do meu treino, isto tornava-se muito claro para o cão». Esta nem necessitaria de comentário. É uma questão de treino, e pronto. Não era por assumir algum tipo de postura física que os cães sabiam quando e como atacar; não era por emanação de alguma energia etérea; não era porque o dono comia primeiro do que os cães; não era porque Ed e seus cães jogavam ao sério e Ed ganhava sempre. Não. A razão pela qual os cães aprendiam tal valiosa lição advinha pura e simplesmente do treino específico desse comportamento, apoiado, claro, no treino anterior de outros comportamentos, que é como quem diz, apoiado na relação de comunicação e interacção que o treino prévio criou e fortaleceu.

«Se estudar comportamento de matilha, ou mesmo comportamento de pastoreio, verá que os problemas relacionados com a matilha são lidados de forma muito subtil ou passiva, mas o desrespeito é lidado de forma muito rápida e agressiva. O mesmo deve acontecer numa relação com um cão.» Esta é uma ideia extremamente desconjuntada. Em primeiro lugar, Ed parece sugerir que lidemos de forma agressiva com um problema de "desrespeito" do nosso cão, o que colide violentamente com alguns dos preceitos que encontramos no resto do conjunto de princípios que fundam o sistema de treino e educação de cães da Leerburg. Em segundo lugar, não se percebe bem a diferença entre "problemas relacionados com matilha" e "desrespeito". O fundamento que legitima a existência de uma estrutura de matilha não se prende com a estipulação de uma hierarquia? Então, um "problema de matilha" não será, justamente, um problema na harmonia da hierarquia criada? Qual é a diferença entre tal "problema" e um problema de "desrespeito"?
Em terceiro lugar, e mais importante de tudo: aquilo a que Ed Frawley denomina "desrespeito", à luz do que escreveu no seu texto, só pode ser interpretado como "incumprimento de uma indicação dada". Ou seja, desrespeito é quando um comando não é seguido, quando uma indicação não é respondida convenientemente. Isto são problemas que surgem durante o treino. Têm a ver com a forma como as consequências estão a ser geridas; tem a ver com a existência de distracções demasiado fortes para que a indicação seja cumprida; etc. Tem tudo a ver com treino, e nada a ver com desrespeito de uma pretensa hierarquia. Se vamos optar por adicionar pressão para que o cão responda (isto é, definir consequências mais aversivas para o mau comportamento) ou se vamos optar por uma estratégia de reforço mais acentuado dos comportamentos desejados, isso é uma escolha que se faz dentro do universo do treino, e tem a ver com a forma como cada um se posiciona dentro desse universo. Mas uma coisa é absolutamente certa: tudo passa por um ajuste no tipo de consequências fornecidas para um determinado comportamento, tudo passa por uma redefinição do ambiente e das variáveis; nada se passa por uma questão de simples imposição de autoridade e respeito ou desrespeito desta. Tal como o próprio Ed Frawley admite, «os cães não fazem coisas para que nós nos sintamos bem; eles fazem as coisas que lhes fazem sentir-se bem». Ora, compete a cada um de nós fazer com que as coisas que fazem os nossos cães sentir-se bem coincidam com as coisas que nos fazem sentir bem também. Compete-nos gerir, criar e canalizar a motivação dos nossos cães. Isto é treinar. Isto é educar. De modo genérico, há duas vias de fazer isto (embora, dentro de cada via, haja toda uma multiplicidade de formas de fazê-lo). Duas, não mais. Uma terceira via, ao meio, é uma invenção e uma ilusão; como tal, necessita de outras invenções ilusórias para se justificar. É invenção e é ilusória toda a história que se conta de uma estrutura de matilha e do papel de líder de matilha que temos de assumir.

Não só é ilusória, como também é perigosa. «Treinadores [e donos] inexperientes precisam lembrar-se de que um cão aprende por repetição. Muitas vezes, são precisas 30 repetições para que um cão aprenda um novo comando. Os treinadores [e donos] são frequentemente culpados de pensar que o seu cão compreende um comando quando, na verdade, eles não repetiram o exercício vezes suficientes para que o cão compreendesse o verdadeiro significado daquilo que esperam do cão. Isto resulta em donos [e treinadores] corrigirem injustamente alguma coisa que o seu cão não compreendeu por completo». 
Toda esta coisa das repetições e da consolidação e generalização de um comportamento tem a ver, única e exclusivamente, com treino. A ideia de que nos devemos tornar "líderes da matilha" só provoca uma ilusão perigosa de que o nosso cão deve comportar-se correctamente por respeito ao seu líder. Quando um cão se "recusa" (chamemos-lhe assim) a sentar durante um passeio, frequentemente ouvimos o diagnóstico: "pois é, está a desrespeitar o dono; ele não o vê como líder da matilha, meu caro". Quando um cachorro de quatro meses mordisca as mãos do dono, claro, "não está a reconhecer o dono como seu líder". E por aí fora. Ora, a ideia de se fundar uma estrutura de matilha e firmar-se o dono como líder dessa matilha é uma forma extremamente apetecível para alimentar a preguiça de passar à frente as trinta repetições e menosprezar o engenho de levar o cão a compreender o que esperamos dele. Quando um cão não responde a um comportamento, ou quando tem um mau comportamento, simplesmente esse comportamento não foi devidamente ensinado e exercitado. Mas claro que é mais fácil dizer-se que o dono não está a ser um verdadeiro líder da matilha. É fácil, mas também é perigoso. Ed Frawley está perfeitamente consciente deste perigo. Daí que chame a atenção para o facto de que um verdadeiro líder não apoiará a comunicação com o seu cão nessa liderança; um verdadeiro líder terá de percorrer os passos todos exigidos pelo treino.
Mas a pergunta que se faz é: se o tal líder da matilha tem de percorrer todos os passos do treino do seu cão, por que razão é que o treino do cão é 25% da educação, apenas? Por que razão se separam as duas coisas? Ou melhor, por que razão se reifica a existência de algo cuja razão de existir continua a não ser clara? Por que razão se dá tanto ênfase à estrutura da matilha e à constituição do dono como líder dessa estrutura, se, dê por onde der, tudo vai desaguar à questão do treino?

A resposta é simples: grande parte das pessoas interpreta o treino de cães como o ensino de um grupo finito de comportamentos. Grupo do qual não fazem parte problemas comportamentais como agressividade. É comum ouvirmos dizer que ensinar a sentar e a responder à chamada são questões de treino, mas resolver a agressividade é uma questão de reabilitação. Numa palavra, existe uma ideia generalizada de que treino é uma parte restrita do comportamento dos cães e da nossa relação com eles. Toda uma outra parte, mais importante, pois claro, já não faria parte da esfera do treino; tudo o resto já faria parte da própria essência da relação do dono com o seu cão. E quis "o destino" que a maior parte das pessoas definisse essa essência numa perspectiva de liderança. Daí que surjam, como cogumelos, os discursos da estrutura da matilha, e afins. Só que, sempre que alguém tenta consolidar um tal discurso, os seus fundamentos vão sempre dar a questões que se relacionam com o treino. SEMPRE. Os dois pólos opostos da metodologia de treino de cães têm várias coisas a separá-los, mas ambos parecem conscientes de que educar um cão é treiná-lo, e treinar um cão é educá-lo. Não há energias, estruturas de matilha, posturas mágicas, encantamentos. O que há é comunicação e ensino. Mútuo. O meio-termo do treino canino também sabe desta verdade, mas, para justificar a sua existência, acaba por criar um dogma apelativo à comunidade de donos de cães. O dogma de que treinar cães é algo completamente restrito e limitado, quando comparado com o resto que se passa numa relação entre cão e seu dono.
O curioso é que, apesar de este dogma ser extremamente frágil nos seus fundamentos (como espero que tenha ficado explícito ao longo deste texto), ele continua a imperar e a ganhar adeptos. Fica sempre bem ficarmos numa posição moderada. Faz-nos parecer menos dogmáticos. Mesmo que o sejamos mais do que todos os outros...



sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Centrão, terceira parte

(continuação)

  • Matilha e antropomorfização

Um outro traço muito presente nos cultores da ideologia do meio-termo consiste na estipulação da relação entre cão e seu dono como sendo estritamente hierárquica. Como tal, a promoção do dono como elemento ascendente nessa hierarquia será o passo mais importante para que todo o comportamento do cão se adeque às expectativas da família.
O texto que explana a "filosofia" de treino de Ed Frawley não poderia escapar a esta tendência. A terceira parte do texto (os pontos "Dogs are pack animals..." e "How to build respect and leadership") dedica-se a abordar uma pretensa constituição essencial do cão como animal de matilha e a estipular a forma de o dono conquistar a posição de topo nessa matilha.
Um dos problemas que Ed Frawley aponta é a constante antropomorfização que muitos donos fazem dos seus cães. Aliás, essa é uma crítica muito em voga, desde há uns anos. De facto, antropomorfizar o nosso cão é uma das formas mais rápidas de encomendar problemas na relação. Existem várias formas de antropormorfizar a espécie canina, mas todas elas, mais ou menos directamente, têm a ver com um revestimento moral dos nossos cães. Jean Donaldson ataca esta questão melhor do que ninguém: a nossa «visão distorcida dos cães é uma forma perversa de medir o quanto nós gostamos deles. Nós queremos que eles sejam espertos, moralmente "bons". (...) A nossa compaixão e consideração por outros seres está fortemente correlacionada com a nossa percepção do quão similares eles são de nós mesmos...». Ora, tendemos a antropomorfizá-los para sustentar e legitimar o quanto nós gostamos deles. São frequentes os artigos e estudos que tentam demonstrar o quanto os nossos cães são parecidos connosco. É como se procurássemos ver o máximo de traços em comum entre homens e cães. Travamos uma relação com uma outra espécie, e, em vez de procurarmos um enriquecimento proveniente de uma diferença essencial, andamos constantemente a descortinar humanidade nos cães e "canidade" nos homens. Quando alguém diz "quanto mais conheço os humanos, mais gosto dos animais", essa pessoa está a avaliar os animais em função de uma falha moral humana; os cães, espécie a quem este tipo de expressão é mais endereçada, são sempre avaliados em função de uma medida humana. "Olhe, olhe para aquilo, são tão bonitos... só lhes falta falar".
Antropomorfizar ou humanizar os cães é, de facto, uma razão forte para a criação de problemas. O que é curioso é que uma das formas de antropomorfizar cães consiste em defini-los como seres hierárquicos e, sobretudo, definir as regras e as determinações de tal hierarquia à luz das hierarquias humanas. A forma como muitos, hoje, se tentam demarcar de uma humanização dos cães é bastante irónica. Ridiculamente irónica. Para evitar tratar os cães como pessoas, transformam-se as pessoas em cães. A família lá de casa, que, até à chegada do cão, era uma família normal, humana, composta por pessoas, pai, mãe, filho, filha, essa mesma família, à chegada do seu novo elemento de quatro patas, transforma-se: deixa de ser família e passa a ser matilha. É frequente ouvirmos que todos os cães vêm as pessoas lá de casa como membros da sua matilha. Não vamos questionar esta afirmação; vamos fingir que ela é inquestionável e que corresponde à verdade. Ora, quando os nossos cachorros chegam a nossa casa, a nossa missão é dar-lhes a conhecer novas regras, dizer-lhes quais são os comportamentos admissíveis e quais aqueles que não o são. Se ele interage maioritariamente com os dentes, compete aos membros lá de casa dizer-lhe que existem outras formas de interagir e que tem de ter cuidado com os dentes, pois "nós não somos cães". Se o cão nos vê como elementos de matilha, não seria lógico que a nossa função fosse ensinar-lhe que, enquanto humanos, nós não formamos matilhas, mas famílias, e não temos hábitos caninos, mas humanos? Parece que talvez este pensamento não seja tão evidente assim, pois tanta e tanta gente opta por assumir que, daí em diante, a sua família será uma matilha. O raciocínio é: se o nosso cão nos vê como membros da matilha, temos de agir como uma, e temos de assumir o papel de líder da matilha. Se o objectivo é ser-se líder e fazer do cão um seguidor, não é extremamente perverso e irónico que determinemos o tipo de grupo que vamos formar em função do membro que se pretende ser o seguidor? Não é altamente risível que, com o objectivo de se colocar o cão no patamar mais baixo da hierarquia, o grupo que outrora fora uma família passe a ser uma matilha? Não é, enfim, altamente absurdo ambicionar formar uma matilha para que o único membro verdadeiramente canino seja o elemento mais inferior da hierarquia? 
Como é óbvio, tudo isto é retórica. Nenhuma família se transforma em matilha. A única razão pela qual se fala em estrutura de matilha é para legitimar uma série de procedimentos que, de outra forma, pareceriam pouco justificáveis. Procedimentos acompanhados do habitual "era o que a mãe do cachorro faria...". Os procedimentos, esses, continuam a ser única e exclusivamente humanos. Nenhum membro de uma matilha ou alcateia passeia outros membros numa trela. Numa matilha não se vestem roupas diferentes todos os dias; não se marcha ou trota em posição bípede; não se manda sentar, deitar, rebolar uns aos outros. Esta história da estrutura da matilha é retórica da mais vaga e inconsistente que podemos imaginar. Quem é que, verdadeiramente, age como um cão perante o seu cão?
É claro que, para sustentar uma ideia que é essencialmente inconsistente, o discurso correspondente não pode escapar a tal inconsistência, também ele. Veja-se o texto de Ed Frawley. Por um lado, sublinha o aspecto central da sua "filosofia" de treino: «Cães domésticos olham para a família com que vivem como a sua matilha. Se os humanos não se tornarem líderes da matilha, os seus cães vão avançar e assumir esse papel». Ora, é como se houvesse uma espécie de necessidade estrutural que exige que um líder se afirme; se não for um humano, será o cão. Tudo a bem da estrutura de matilha. É como se o cão até nem quisesse muito ser o líder, mas, como ninguém se assume, lá terá de ser ele. Bom. Por outro lado, Ed Frawley acaba por admitir que «os cães vêm a vida em termos de preto e branco, (...) vêm a vida em termos de "coisas que são boas para eles" e "coisas que não são boas para eles". (...) a força motriz na vida de um cão é o seu desejo de fazer coisas que os façam sentir-se bem. Os cães nunca fazem coisas para fazer com que o dono se sinta bem, eles fazem coisas que os fazem sentir-se bem». Ora, se fazem as coisas para se sentir bem, pouco se estarão importando com uma pretensa estrutura de matilha. E pouco interesse teriam em ter de assumir liderança perante uma matilha de bípedes com hábitos muito diferentes dos seus... Como conjugar esse carácter oportunista dos cães com uma necessidade intrínseca em pertencer a uma hierarquia normalizada e moralmente estruturada? Como harmonizar a ideia de que «os cães nunca fazem nada para agradar aos donos» com a ideia de que o imperativo número um na educação dos nossos cães é estabelecermo-nos como líderes do nosso cão? Pois claro, não há nenhuma conjugação possível. Qual é a necessidade de formarmos uma hierarquia de matilha e estabelecermo-nos como seu líder se admitimos que o cão não faz nada para agradar esse mesmo líder, e apenas faz as coisas que o façam sentir-se bem? Porque o líder pode providenciar más consequências para o comportamento do cão e, assim, controlar a acção deste? Mas isso é uma da componentes do treino de cães; não é necessário qualquer recurso a ideias mais ou menos elaboradas acerca de estruturas de matilhas e lideranças alfa. Tudo isto se trata apenas de mais uma inconsistência discursiva que é decorrente da inconsistência de ideias em que este discurso se apoia.
O grande problema deste discurso é que estabelece como pressuposto e axiomático um princípio altamente problemático, um princípio que é altamente problematizável na sua forma e na sua constituição. O grande problema é partir-se de um pressuposto inquestionável de que numa relação entre um homem e um cão se define, automaticamente, uma estrutura de matilha, e que toda uma série de problemas surgem quando o elemento humano do conjunto falha em reconhecer essa estrutura automática. Este é o tipo de princípios que não se adquire com a experiência. Existem duas formas de lidar com este tipo de princípios: (i) questioná-los criticamente e remetê-los para os enunciados fornecidos pela(s) ciência(s) que estuda(m) o tema; ou (ii) acreditar neles religiosamente e assumi-los como dogmas da nossa prática. Não tenho grandes problemas com a segunda via; por muito que nos custe admiti-lo, este é um procedimento que rege uma parte significativa da nossa vida. O problema é que, quando se opta por uma tal via e quando, ao mesmo tempo, se tenta erigir todo um sistema de processos e práticas que se fundam na ciência do comportamento e da aprendizagem, as incoerências vão começar a aparecer como cogumelos. Alguns deles bem tóxicos para o resto do sistema...

(continua...)


quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Centrão, segunda parte

(continuação)

  • Três categorias de treinadores

Numa segunda parte do seu texto, Ed Frawley faz uma distinção dos três categorias de treinadores que, segundo ele, existem. Os que treinam os seus cães com base em recompensas; os que treinam os seus cães com base em castigos; e os que treinam os seus cães com base em recompensas e em castigos. A grande questão é que, para Ed Frawley, os membros da primeira categoria apenas usam recompensas e os da segunda categoria apenas usam castigos. A virtude estaria, pois claro, na posição intermédia, representada na terceira categoria, que usaria tanto as recompensas quanto os castigos.
Vamos ver de que forma Ed Frawley define estas categorias.

A primeira categoria diz respeito aos treinadores que, segundo ele, «suplicam ou subornam e conduzem os seus cães a fazer alguma coisa ao oferecer comida ou um brinquedo». «Não me interpretem mal, continua Ed, eu também uso comida e brinquedos em treino, mas também uso distracções e correcções. As pessoas nesta categoria não usam nem distracções nem correcções.» Bastar-me-á apenas esta definição para demonstrar o erro de princípio que Ed Frawley comete. 
Em primeiro lugar, nenhum treinador, seja lá de que categoria for, ignora que se devam usar distracções para fortalecer um comportamento. Nenhum. Apenas donos inexperientes acham que quando um cão segue o comando 'senta' na cozinha, ele falo-á de igual forma no parque com dez cães à volta. Um treinador sabe que isto não se passa assim. Dizer que os treinadores que se baseiam em recompensas não usam distracções é uma mentira muito conveniente para desacreditá-los.
Em segundo lugar, nenhum treinador no mundo usa apenas recompensas. Mesmo que não queira ou que disso não tenha consciência, um treinador que esteja a usar reforço positivo terá de usar também castigo negativo, para evitar que comportamentos concorrentes (e indesejados) sejam também reforçados. Usar uma trela é estar pronto para usar castigo negativo quando necessário (sem recurso a esticões, porque isso já será castigo positivo). Dizer que os treinadores que se baseiam em recompensas não usam correcções é uma mentira muito conveniente para desacreditá-los.
Em terceiro lugar, usar comida ou brinquedos como forma de recompensar comportamentos não é, não pode ser uma forma de suborno. Para colocá-lo de forma simples: quando usamos comida como forma de suborno, estamos a fazê-lo mal. Ora, repare bem o estimado leitor que para Ed Frawley o problema não está em distinguir um bom uso de um mau uso de comida ou de brinquedos; para Ed, qualquer uso de comida e brinquedos é uma forma de suborno. E o próprio Ed admite que usa comida e brinquedos no treino. Logo, está a admitir que usa formas de suborno. E, para contornar essa fase de suborno, Ed Frawley vai compensar a balança ao usar também "distracções e correcções". Ed Frawley apenas defende a necessidade de correcções e castigos porque o uso de recompensas é, por essência e definição, uma forma de suborno. Se Ed soubesse, ou admitisse, que o uso de formas de reforço positivo não são formas de suborno; se soubesse ou admitisse que reforço positivo implica criar um historial de boas consequências para um determinado comportamento de modo a que este comportamento se torne cada vez mais frequente, sólido e reforçante em si mesmo; então teria muitas mais dificuldades em justificar as razões pelas quais esta categoria de treinadores peca por defeito. 

A segunda categoria diz respeito a treinadores que, segundo Ed, «intimidam e forçam os seus cães para fazerem o que os donos querem que eles façam». Ed denomina este tipo de treinadores como sendo treinadores do esticão e da cedência (yank and crank trainers), e toma como seu modelo William Koehler. (Uma nota de curiosidade: William Koehler tem mais anos de experiência do que o próprio Ed Frawley; o que é que isto diz do argumento da experiência como princípio de um bom treino? Claro, os anos de experiência não podem ser fundamento da qualidade nem do tipo de treino. Fim de nota.)
Uma vez mais, existem aqui erros de base. Nomeadamente dois.
Em primeiro lugar, nenhum treinador usa apenas castigos e correcções. Por definição, os castigos positivos só funcionam se agregados a um reforço negativo. Existe sempre a recompensa do fim do castigo positivo. No mais, qualquer treinador da "escola" William Koehler usa uma (pretensa) forma de reforço positivo: o elogio. Faz parte de qualquer compêndio de treino tradicional e focado nas correcções proferir palavras de elogio quando o cão "acerta". Se os elogios funcionam como forma efectiva de reforço positivo ou de motivação, isso já é outra questão (o próprio Ed Frawley tem uma apurada e perspicaz visão acerca do assunto, aqui e aqui). A questão é que, segundo a lógica dos "yank and crank trainers", existe espaço para algo mais do que simplesmente correcções; existe espaço para assinalar o bom comportamento. 
Em segundo lugar, o mais importante. Repare o estimado leitor que aquilo que Ed Frawley rejeita nesta categoria não é o tipo de correcções que é feito. Para Ed, o problema não está numa distinção entre boas e más formas de correcção. Para Ed, qualquer uso de correcções é uma forma de forçar os cães a realizarem um comportamento. O erro que Ed distingue nesta categoria de treinadores é focarem-se exclusivamente nas correcções e esquecerem-se da componente recompensadora. 

Aquilo que podemos concluir das definições que Ed Frawley faz destas duas categorias de treinadores é a seguinte: o problema não está no uso da comida e de brinquedos como suborno; o problema não está no tipo forçado e intimidante das correcções: o problema está no uso exclusivo de uma das duas partes. Aquilo que Ed Frawley pretende é um uso combinado daquelas duas categorias. A terceira categoria de treinadores situa-se no meio-termo. Segundo palavras do líder da Leerburg, a terceira categoria «é formada por treinadores que pretendem estar no meio das outras duas categorias». Ed Frawley prossegue, dizendo que tais treinadores «se equilibram no meio, mas estão sempre preparados para se moverem para um lado ou para o outro dependendo daquilo que se estiver a passar num determinado momento do treino do cão».
Ora bem, juntando todas as pontas destas definições, Ed Frawley defende uma categoria de treinadores que balancem entre subornar o cão e intimidar ou forçar o cão. Não se está aqui a fazer qualquer exercício especulativo ou deturpador. Se Ed Frawley define a primeira categoria como aquela que "suplica aos seus cães por um comportamento, e suborna-os para os obter"; se define a segunda categoria como aquela que "intimida e força os cães para obter um comportamento", e se, por fim, define uma terceira categoria (na qual ele se insere) como aquela que "balança entra a primeira categoria e a segunda categoria para aplicar o mais adequado à fase específica do treino", então, aquilo que Ed Frawley está a defender é, simples e literalmente: "oscilar entre subornar o cão ou forçar o cão".
Estou certo de que o estimado leitor se recordará do que foi dito no texto anterior acerca das ideologias do meio-termo: de tanto seleccionar ou peneirar o que de melhor há nos extremos, o meio-termo fica apenas com os restos. Ou seja, o meio-termo, por se definir como posição equilibrada entre dois extremos, fica sempre com aquilo que acaba por criticar nesses dois extremos.
Se Ed Frawley quiser defender que não é isso que pretende; se quiser defender que não pretende nem subornar cães nem intimidá-los, então terá de redefinir a forma como descreveu as duas primeiras categorias de treino. Tenho é a impressão que uma tal redefinição iria tornar a terceira categoria absolutamente desnecessária.

(continua...)

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Centrão, primeira parte


"Um dos grandes problemas dos treinadores de cães é que, normalmente, são muito incompletos. Ora usam apenas castigos e esquecem-se das recompensas; ora usam apenas recompensas e esquecem-se dos castigos. O segredo está em dosear ambas as coisas e encontrar o ponto de equilíbrio. O segredo é dominar ambos os mundos para encontrar o difícil balanceamento entre eles."

Ora, uma vez mais, o moralismo! Discursos como este colhem e captam audiência justamente por apelarem ao moralismo que habita em todos nós e que nos diz, por defeito, que "no meio é que está a virtude". Uma pessoa pode não saber absolutamente nada sobre um determinado assunto, mas a sua inclinação natural é para se posicionar no meio, numa posição intermédia: "Pelo sim, pelo não, fico-me pelo meio... exponho-me menos e ainda dou ares de prudência e abertura de espírito."  É parte constitutiva da nossa natureza colocarmo-nos numa posição de meio termo. A maior parte das pessoas que não se envolve nem estuda muito acerca de ideologia política tem sempre uma posição moderada; pode ser mais de esquerda ou de direita, mas apressa-se sempre a dizer que não gosta nada de extremismos. Parte da nossa forma de nos mostrarmos seres compreensivos e eclécticos passa por aparentar uma posição de abertura para aceitar argumentos das duas partes, e peneirar o melhor de cada uma para formar uma pretensa super-posição constituída apenas pelo melhor de dois mundos.
A estratégia do meio-termo começa por estipular uma realidade maniqueísta, uma realidade formada por dois pólos opostos, e dois pólos apenas. O segundo passo consiste em evidenciar os pontos fortes e fracos de cada uma das partes. E o terceiro passo consiste, finalmente, em fundar uma terceira via, ao centro, que reúna o que de melhor há nas duas partes opostas e que descarte o pior.
Os problemas desta estratégia são vários: em primeiro lugar, raras são as realidades constituídas apenas por dois pólos; cada um desses pretensos pólos é constituído por diferenças internas que fragmentam a realidade em muito mais do que duas simples realidades opostas; em segundo lugar, os pontos fortes de duas posições contrárias raramente são compatíveis, pelo que é apenas estratégia discursiva e ilusória dizer-se que existe uma terceira via que reúne o melhor de dois mundos; em terceiro lugar, uma posição centralista raramente acolhe o melhor das posições polares; ao contrário, de tanto peneirar, aquilo que é acolhido pelo centrão é, invariavelmente, o que sobra dos pólos. Uma verdadeira via alternativa, uma verdadeira terceira via nunca opta pelo meio termo; ao invés de se agarrar ao que já há e seleccionar o que lhe convém, uma verdadeira nova via inaugura novas possibilidades. Em quarto e último lugar, uma posição centralista pode ser tão ou mais ideológica e dogmática quanto as posições polarizadas. O centrão é isso mesmo: uma ideologia do meio-termo, cujo fundamento principal é o de fazer-se passar por eclético e moderado quando, na verdade, defende as suas posições de forma tão dogmática quanto as posições extremistas.
Por todas estas razões desconfio sempre quando alguém forma um discurso baseado numa retórica do meio-termo. E o mundo do treino de cães não escapa a esta lei.

Para que o estimado leitor compreenda em que consiste a posição (retórica) do meio-termo, leia isto. Não vai encontrar melhor representante do que este. Tudo o resto ou é imitação barata ou é de qualidade duvidosa. Esta fonte que aqui lhe forneço tem a seriedade de basear as suas afirmações em largos anos de experiência, tem a honestidade de reconhecer erros passados e aprender novas coisas, mesmo depois de mais de quarenta anos a fazer esses erros, e possui a proeza (difícil de encontrar) de tentar formar um sistema fundamentado de educar um cão.
Posto isto, e uma vez que este texto representa o que de "melhor" há na ideologia do meio-termo, o Abacaxi vai dedicar este e os próximos "posts" a um trabalho crítico do conjunto de ideias apresentadas bem como das consequências e dos preceitos implícitos num tal conjunto. Façamo-lo por partes.

  • Introdução: o apelo à experiência

Comecemos pelo curto texto introdutório, no qual Ed Frawley fala da sua filosofia (leia-se ideologia) de treino e educação de cães. A ideia fundamental desta introdução, bem como o seu maior problema consiste no relevo exacerbado da experiência. A dada altura é dito que «um bom treino de cães reside na combinação de senso comum com uma base sólida de experiência e uma clara compreensão da forma como os cães pensam e interagem (estrutura de matilha).»
Ora, para se ter uma vasta experiência num ramo qualquer é necessário, justamente, acumulação de anos que formem essa experiência. Isso implica que, a dada altura no processo, essa experiência não exista ainda; e o indivíduo que mais tarde virá a ser um profissional experiente, ainda não o é. Ora, como um dos requisitos de um bom treino, segundo Ed Frawley, é ter larga e sólida experiência, isso significa que, durante o tempo em que essa experiência ainda não havia sido constituída, e o indivíduo era ainda inexperiente, o treino por si realizado não poderia ser bom. Logo, um indivíduo que seja "bom treinador", segundo Frawley, é um indivíduo experiente; mas, por definição, toda a sua experiência se baseia em anos de mau treino, que equivalem aos anos em que ainda não se detinha a tal base sólida de experiência. A definição de Frawley de "bom treino" é, em si mesma, absurda, pois baseia-se em algo que se contradiz a si mesmo.
E depois vem o famigerado "senso comum". É verdade que, no inglês americano, "common sense" não é bem "senso comum", mas uma mistura de "senso comum" com "bom senso". Ainda assim, a ideia é extremamente frágil. O senso comum, misturado com o bom senso, é a causa da esmagadora maioria dos problemas que existem no que toca à educação de cães. Aliás, que coisa é essa de senso comum e de bom senso? Desde logo, é algo extremamente variável de cultura para cultura; depois, quando falamos de senso comum falamos de que tipo de comunidade? entre donos experientes e preocupados, certos mitos já se desvaneceram, mas os mesmos continuam a proliferar no senso comum de outros grupos com outros interesses... Basicamente, o apelo ao senso comum e ao bom senso é uma bela desculpa para se evitar um estudo pela via da ciência, e para se validar um tipo de conhecimento baseado nas experiências próprias. O problema é que, como se sabe, as experiências variam de caso para caso e não têm nem podem ter qualquer valor de universalidade ou generalidade. 
No caso específico deste texto de Ed Frawley, o apelo ao senso comum é apenas uma legitimação do valor que é conferido à experiência. O grande argumento inicial de Ed Frawley é, pois claro, a sua vasta experiência. Mas note-se no seguinte:  a experiência de Ed Frawley no ramo é, segundo o próprio, superior a 50 anos de trabalho directo com cães, e mais de 40 anos de trabalho profissional. No entanto, há cerca de 12 anos atrás, o próprio Ed Frawley fez uma grande viragem nos princípios que regiam o seu treino, e hoje admite que uma parte significativa do seu trabalho anterior ao início do presente século está ultrapassado e, usando palavras suas, não passava de uma grande porcaria ("it's rubbish!"). Não está em causa a viragem e a renúncia; ela não deixa de ser digna de realce: é preciso uma dose considerável de honestidade e despojamento de si próprio para admitir 30 anos de erros. O que está em causa é que, durante mais de trinta anos, Ed Frawley concebeu práticas que hoje reprova; o que é que isso diz acerca do argumento da experiência? Simplesmente, a experiência tem um papel muito relativo em tudo isto. Não foi por fruto da experiência que Ed Frawley terá mudado de opiniões; terá sido pelo confronto com outras perspectivas, pelo advento e sucesso comprovado de vias alternativas que fizeram Ed Frawley rever os seus princípios, e rejeitar alguns deles. A experiência nunca pode valer como argumento que comprove a legitimidade de uma determinada ideia. Por cada indivíduo com 30 ou 40 anos de experiência que defenda uma determinada ideia, existem quatro ou cinco com experiência igual ou superior que defendem uma ideia contrária. A experiência vale muito pouco, a partir do momento em que vários profissionais com o mesmo nível de experiência chegam a conclusões opostas. E valerá ainda menos quando se trata de conceitos de teor científico. Eu posso um dia chegar a ter 50 anos de prática diária de lavar louça manualmente; mas isso não me vai dar créditos alguns se eu quiser construir um discurso acerca do modo de acção do ácido linear alquil benzeno.. 
Conceitos como os de dominância têm um âmbito bem definido dentro da área da Etologia. Para se falar dele é preciso, pelo menos, ouvir o que está disponível no corpo discursivo da ciência respectiva. Não faz sentido basear todo um sistema de treino e educação de cães num conceito cujo tratamento científico não só se ignora como se coloca propositada e conscientemente de lado. A experiência é manifestamente insuficiente e, sobretudo, nunca pode legitimar nenhum discurso com pretensões de validade universal e sistemática.

(continua...)