segunda-feira, 26 de agosto de 2013

... e depois começam os castigos

«Em primeiro lugar, começamos por treinar os nossos cães apenas com recurso a recompensas. Esta é a fase em que ensinamos os comportamentos»
«Certo...»
«Depois, certificamo-nos de que o cão sabe o comportamento, isto é, certificamo-nos de que ele sabe o que o nosso comando quer dizer»
«Hm..., e quando é que isso acontece?»
«Quando o cão já responde a 80% dos comandos.»
«Hm,... e depois?»
«Aí começamos um trabalho de correcção do mau comportamento.»
 
Por esta altura, eu arriscaria dizer que o caro leitor estará à espera que nos concentremos nesta última afirmação. A expectativa criada na epígrafe levá-lo-á a pensar que este texto tratará da questão da correcção do mau comportamento, e da sua necessidade ou falta dela. Bom, de certa maneira, sim, podemos dizer que as correcções estarão na baila, mas apenas em modo residual.
O problema naquele diálogo epigráfico não reside na aplicação dos castigos correctivos, mas na afirmação que antecede essa aplicação e que a justifica. O problema de que se vai tratar está na ideia de que existe um momento determinado em que o cão sabe o comportamento. Melhor ainda, o problema está na interpretação dos 20% de falhas de resposta como demonstrações de desobediência. Numa palavra: vamos falar do grande equívoco que reside na ideia de que, quando um cão já responde a um número significativo de vezes a um comando, ele já sabe o que se pretende dele, e vamos falar no consequente, e ainda maior, equívoco de que sempre que o cão não responde ao comando que, pretensamente, já sabe, ele estará a entrar num incumprimento ou em desobediência.
 
Quatro notas prévias, que ajudarão a dar maior precisão ao intuito de todo este texto: (i) um treinador ou amador cultivado que segue um modelo como aquele exemplificado no texto epigráfico tem o mérito de conhecer e saber aplicar a lei geral de aprendizagem a treino do seu cão (basicamente, conhecer e saber aplicar a lei básica de que o comportamento é moldado em função do tipo de consequências que lhe seguem com mais frequência); (ii) um treinador ou amador cultivado que segue esse modelo de treino tem o segundo mérito de seguir um esquema educativo do cão no qual estabelece um ambiente propício para situações de treino, e não se limita a ir educando o seu cão à medida que os dias vão passando e os problemas surgindo; (iii) não se pretende, de todo, insinuar sequer que não se deve corrigir o mau comportamento; e (iv) o tipo de correcção aplicada administrada àqueles 20% de "falhanços" tanto pode ir do mero castigo negativo ou da repreensão verbal, até ao esticão mais rude de estranguladora, passando por formas leves de "time-outs" ou choques eléctricos de intensidade reduzida. Não interessa. O problema não são os castigos; o problema não está na conclusão de que teremos de passar a uma fase de castigos ou de pressão. O problema está na premissa que motiva essa conclusão: o problema está na ideia de que um cão sabe o que se espera dele quando atinge uma determinada taxa de sucesso na resposta a um determinado pedido/comando, e que quando a resposta não surge (ou surge de forma desajustada), o cão simplesmente está a desrespeitar, de alguma forma, a indicação que lhe foi dada. E essa conclusão, já a vi ser elaborada tanto por treinadores que usam predominantemente formas de castigos como motivação para o treino, quanto por treinadores especialmente concentrados nas recompensas.
 
É por isso que considero urgente recuar um passo no raciocínio, e analisar séria e criticamente aquela premissa que nos dirige para esta conclusão precipitada. É preciso questionar o que é isso de o cão "saber" um comportamento, e compreender os potenciais perigos desta ilação. É isso que se tentará fazer aqui no abacaxi ao longo desta semana.

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