quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Que horas são?

«Bom, depois de sair de casa, tanto faz demorar 15 minutos como duas horas; o seu cão não notará diferença.»
«Ai, sim? Mas então porquê?»
«É que os cães não têm percepção do tempo.»
«Ah...»

O que é mais espantoso neste diálogo nem é a falsidade da afirmação acerca da percepção do tempo que os cães têm ou deixam de ter; o mais espantoso é a forma como esta e outras afirmações são feitas sem qualquer tipo de fundamento adequado. 
A última vez que ouvi alguém dizer que os cães não têm percepção do tempo, perguntei à pessoa se baseava essa afirmação em algum dado minimamente fundamentado, se tinha lido isso em algum lado; a resposta foi qualquer coisa como:

«...eu não preciso de ler nada; quando falo não é com base no que leio, mas com base na experiência que tenho com os meus cães.»

Isto, quanto a mim, reproduz com extrema fidelidade a razão que leva à formação de grande parte dos mitos relativos à educação de cães. As pessoas universalizam aquilo que é e só pode ser relativo e particular; as pessoas elevam à qualidade de lei aquilo que obtêm na própria experiência. As consequências são muito graves.
Não há nada de mal em dizermos que "todos os meus cães" preferiram frango a salsicha; tudo bem. Outra coisa bem diferente é dizermos que, normalmente, "todos os cães" preferem frango a salsicha. Este tipo de afirmação a tender para o universal e de teor objectivo só pode resultar de estudos controlados e rigorosos; não pode, nunca, basear-se num conjunto muito limitado de experiências, muito menos quando essas experiências não obedecem a uma só exigência de cientificidade. 
Quando, numa discussão acerca de comportamento de cães, se introduzem conteúdos científicos e se apela a uma atitude crítica, normalmente é-se acusado de arrogância e esterilidade. Ora, arrogante é aquele que ambiciona formar um tipo de conhecimento dispensando aquilo que os outros têm para dizer, nomeadamente quando o outro é o corpo da ciência. Estéril é o diálogo entre dois indivíduos que baseiam as ideias que debatem no que "sempre ouviram dizer". Uma coisa é desconhecermos alguma coisa, de forma inocente, e incorrermos em certos enganos por causa desse desconhecimento: não há mal nenhum; fazemo-lo a toda a hora, a respeito de qualquer tema. Outra coisa bem diferente é construirmos uma série de "conhecimentos" sobre um tema com base numa arrogante insistência em não querer saber o que é que a ciência realmente diz acerca desse tema. Podemos até discordar do que é dito no discurso científico; não podemos é dar-nos ao luxo de ignorá-lo e achar que sabemos tudo. E, já agora, para discordar desse discurso, convém que me apoie numa base sólida e crítica. Convirá que me informe. Tal como já disse neste blog: não é por ter um convívio diário com os meus dentes há já muitos anos que posso ambicionar ter conhecimento acerca da ciência dentária...

Mas, e então, os cães têm ou não percepção do tempo?

Se, em vez de cedermos à tentação de ir na corrente do diz-que-disse-com-ares-de-pensamento-contra-corrente, puséssemos realmente o nosso espírito crítico a funcionar, facilmente concluiríamos que, muito provavelmente, algum tipo de percepção diferencial do tempo os cães deverão ter. Se os cães não tivessem, de todo, percepção do tempo, não haveria todos estes vídeos de cães que ficam em êxtase quando se reencontram com os seus donos que partiram e estiveram ausentes durante meses. Se não tivessem qualquer tipo de percepção do tempo, não haveria dificuldade em deixar os nossos cães em casa por longos períodos, e não haveria cães com ansiedade por separação. Deixar um cão sozinho por cinco minutos e deixá-lo por quatro horas não é a mesma coisa, e ninguém com o mínimo de sensatez poderá negá-lo. Quanto mais não fosse, as necessidades físicas de urinar, defecar e alimentar-se dariam ao cão algum tipo de impressão da duração e da passagem do tempo. 
Mas se o espírito crítico do caro leitor estiver enferrujado, e precisar de mais dados acerca do tema, então vejamos. Patricia McConnell dedica um "post" do seu precioso "blog" a este tema. Nele, menciona-se um estudo elaborado por Therese Rehn e Lindsay Keeling no qual se reuniu uma amostra cientificamente significativa de cães que foram deixados sozinhos em casa por períodos de 30 minutos, 2 horas e 4 horas. Entre outras conclusões, descobriu-se que a diferença da reacção dos cães à chegada dos respectivos donos varia muito quando eles estão sozinhos apenas por 30 minutos e quando a ausência dos donos é de duas horas. Curiosamente, a reacção não difere, em termos práticos, das duas para as quatro horas de ausência. Ora, 30 minutos, claramente, não são o mesmo que duas horas. E como interpretar a indistinção nas reacções que os cães tiveram quando deixados sozinhos 2 horas e quando deixados sozinhos 4 horas? Podemos ter aqui uma certa prova de que a percepção do tempo que os cães têm é diferente da nossa; mas será que as nossas reacções são assim tão diferentes quando alguém que amamos demorou 2 horas ou 4 horas a voltar? 
Bom, que as percepções do tempo que nós temos e aquela que os cães têm serão muito provavelmente diferentes, é algo que todos nós aceitaremos quase sem pensar. Afinal, mesmo dentro de culturas diferentes da espécie humana, a percepção do tempo é tida como sendo diferente. Por que não o haveria de ser entre membros de espécies diferentes? Mas o facto de os cães terem percepção do tempo diferente da dos humanos não significa, de todo, que não tenha qualquer tipo de percepção do tempo.


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