domingo, 1 de setembro de 2013

Aprendizagem contínua e reforços diferenciais

Mas, então, que outra forma de abordar a educação dos nossos cães existe? Que alternativa ao paradigma de "ensinar" o cão até saber um comando?

A aprendizagem tem de ser contínua. Não deveria haver sequer dúvidas em perceber o alcance desta ideia. Quando achamos que o cão já sabe isto ou aquilo, deixamos de providenciar boas consequências para o comportamento, e este, com o tempo, acaba por se extinguir. Afinal, não é justamente o processo que faz com que os maus comportamentos se extingam? Não é justamente por deixarmos de fornecer boas consequências para o mau comportamento que este se vai apagando? Pois bem, o mesmo se passa com os bons comportamentos. Se os tomarmos como garantidos e não continuarmos a fornecer boas consequências para eles, esses bons comportamentos vão desaparecendo, ou, pelo menos, vão perdendo solidez.
E não é só isso. Como se vem defendendo ao longo dos textos do Abacaxi, ensinar o nosso cão é a melhor forma de comunicarmos e de nos relacionarmos com ele. Ensinar um cão é estimulá-lo; é dar-lhe cada vez maior intimidade com a linguagem dos seus donos; é tornar a sua vida repleta de novidades; é enriquecer o ambiente em que ele vive. Mesmo quando nos limitamos a "cuidar" de um cão, sem, aparentemente, lhe estar a ensinar nada em concreto, a verdade é que estamos continuamente a transmitir-lhes informações. Quer queiramos, quer não, os nossos cães estão em permanente aprendizagem. Sendo assim, não faz sentido não nos integrarmos, activamente, nesse processo de aprendizagem.

Claro que isto em nada contradiz o paradigma do "o meu cão já sabe sentar". Quem segue essa linha de educação do seu cão pode sempre seguir para novos comportamentos, depois de já ter "adquirido" um outro. Pode sempre ir acumulando novos e novos comportamentos. 
Mas quando falo em aprendizagem contínua, refiro-me também, e sobretudo, à aprendizagem de um só comportamento. E isto qualquer pessoa compreende. Ensinem o vosso cão a ladrar ao comando; e, assim que ele começar a responder, passem dois anos sem praticar o comando. Depois peçam-no novamente como se o tivessem ensinado ontem. Por certo ele não responderá, ou, no melhor dos cenários, responderá com enormes dificuldades. Ou seja, toda a gente sabe que é preciso ir praticando os comportamento (pretensamente) adquiridos.
Mas existe uma enorme diferença de atitudes e de efeitos entre (i) praticar um comportamento adquirido e (ii) manter o processo de aprendizagem em contínuo. Desde logo, como já dissemos nesta semana, quando assumimos um determinado comportamento como adquirido, reagimos de forma muito mais "reactiva" quando o cão não responde ao pedido. Mas não só. Muitas vezes, descuramos as consequências para os comportamentos. Um exemplo. Treinamos o nosso cão a responder à chamada. Despendemos vários meses a solidificar o comportamento. Até ao dia em que, contabilizando, o comportamento atinge um grau satisfatório para o dono. Bom, o que se segue? O comportamento é dado como adquirido, então, o dono limita-se a chamar o cão, sem fornecer consequências adequadas. O dono chama, o cão vem, e o dono nada faz de especial (quando muito, lá sai uma festinha ou uma palavra afectuosa). E porquê? Justamente, porque o comportamento é interpretado como sendo adquirido. Pouco tempo depois, todavia, aquilo que se considerara adquirido demonstra ser muito frágil e volátil; em outras palavras, o cão deixa de responder à chamada. Simplesmente, não podemos deixar de fornecer consequências positivas para os comportamentos desejados. E isto implica uma difícil mudança de paradigma na forma de encarar a educação dos nossos cães; implica pôr de lado a ideia de comportamentos adquiridos, e enveredar por uma educação contínua.
Só que, claro, não podemos manter o mesmo tipo de feedback para empre. Não podemos usar sempre as mesmas recompensas, e não deveremos recompensar sempre um comportamento que consideramos "entranhado". Se recompensarmos sempre que o nosso cão se senta, e se o fizermos sempre da mesma forma, não só estaremos a tornar todo o procedimento previsível e monótono, como estamos a selar a sentença para que esse comportamento fique completamente estagnado. E quando um comportamento estagna, isso não significa que se solidifique e se mantenha fiável; significa que as motivações para esse comportamento deixarão de ter significado. 
Como resolver este aparente paradoxo? Como ultrapassar a aparente contradição que há entre (i) termos de dar constante e contínuo feedback aos comportamentos dos nossos cães e (ii) não podermos recompensar um comportamento para sempre, indefinidamente? De facto, à primeira vista parece mesmo haver uma incompatibilidade entre as duas "exigências". A chave para a resolução do problema está na noção de diferencial. Como se sabe, os sinais de que uma dada economia local está "de boa saúde" num determinado momento não têm a ver com a riqueza gerada em termos absolutos, mas em termos relativos, isto é, têm a ver com o crescimento que houve em comparação com um outro momento determinado. Da mesma forma, para que haja produção de energia, é necessário que haja um diferencial de potências entre dois pólos. Quando um professor fica entusiasmado quando um seu aluno sobe de um 13 para um 16, e fica desapontado quando um outro desce de um 18 para um 16, tudo isto faz imenso sentido, e tem a ver com a lógica diferencial: não importa tanto o conhecimento e as capacidades adquiridos que um aluno demonstrou num determinado dia; importa sim acompanhar e promover a evolução desse aluno, gerando níveis de motivação que o levem a manter-se interessado. 
Na aprendizagem dos nossos cães, a coisa não é distinta. Manter um cão motivado e fazê-lo entrar num processo de aprendizagem contínua implica que adoptemos a lógica diferencial para a comunicação que encetamos com os nossos cães. Assim, em vez de estipularmos um ponto definido que, uma vez atingido, significaria que o nosso cão "saberia", em termos de aquisição, um determinado comportamento, talvez fosse preferível inventar novas formas de melhorar o comportamento. Se o nosso cão já senta em casa sem distracções, aumentamos as distracções. Se já senta com distracções, repetimos os exercícios fora de casa. E depois incluímos distracções. E depois aumentamos as distracções. E depois aumentamos a distância a que proferimos a deixa verbal. E depois aumentamos ainda mais. E depois pedimos que o nosso cão permaneça sentado durante mais dois segundos do que o normal. E depois mais quatro. E depois mais distância. E ainda mais segundos... e mais distracções. Depois, integramos o 'senta' numa série de comportamentos diferentes, e recompensamos apenas a série de comportamentos, e não apenas o comportamento isolado. Depois variamos a série, e modificamos a sequência, tornando-a imprevisível. E depois... e depois... O que importa é que estipulemos uma regra essencial para a educação do nosso cão: a regra do n+1. Por cada patamar n que atinjamos, haverá sempre um superior a atingir. 
Assim, vemos que a aprendizagem contínua não significa aprendizagem estável; em ordem a manter a aprendizagem num processo contínuo, é necessário providenciar consequências diferenciais. Deste modo, é possível estipular formas de avaliar o comportamento do nosso cão segundo parâmetros distintos do "sabe ou não sabe": tais parâmetros são "melhor do que a média, igual à média, inferior à média". Se um cão obteve desempenho das últimas vezes, o objectivo no próximo exercício será que ele atinja x+1, isto é, um melhor desempenho. É a isto que se refere Ian Dunbar quando fala de reforços diferenciais: quando o nosso cão tem um desempenho igual ao normal, não vale a pena recompensar com algo superior a uma simples palavra de apreço, uma espécie de "gesto de cortesia" que dê a saber ao nosso cão que reparamos e agradecemos o comportamento, mas sem fazer dessa resposta o máximo que o nosso cão nos poderá dar; quando o nosso cão tem um desempenho melhor do que o normal, aí sim, reforçamos significativamente! Sendo que este "melhor do que o normal" em breve se tornará "o normal", e deixará de ser reforçado dessa forma: o reforço significativo surge apenas quando surge o +1, isto é, o melhor do que a média
No fundo, usamos a mesmíssima lógica que toda a gente usa para recompensar um cão quando começa a aprender um comportamento. Reforçamos quando ele tem o comportamento correcto para que ele se torne "a norma". A diferença é que não estabelecemos um ponto final no processo de aprendizagem. Mantemos esse processo para sempre, reforçando os comportamentos melhores do que a média e nunca dando como adquirido e solidificado um comportamento. Não conheço forma melhor de manter um comportamento activo e um cão motivado para o realizar.
Outra regra de ouro. Tudo isto pode soar a algo muito desgastante, para o dono e especialmente para o cão. Tudo isto pode parecer uma forma de forçar os nossos cães a tarefas indesejadas por eles. Não tenho dúvidas de que todo este discurso parecerá, para muitos, um exagero ou mesmo um certo abuso. Em relação a essas reticências possíveis, eu relembro que, mediante este processo de aprendizagem contínua com reforços diferencias, nunca obrigamos o cão a nada. Na verdade, é justamente a melhor forma que conheço de evitar recorrer a formas de aprendizagem "forçada" ou "por obrigação". Trata-se simplesmente de manter o cão motivado. Haverá cães cuja evolução seja mais lenta, e cuja motivação seja mais difícil. Tudo bem. Já se sabe que todo o processo terá de ser adaptado a cada cão. Mas isso não muda uma vírgula à forma geral do processo. Haverá cães que levarão uma vida toda a alcançar um patamar inicial de dificuldade, e haverá outros para os quais o grande desafio consiste em imaginar níveis de dificuldade cada vez maior. Mas nenhum cão pode ser considerado inapto para cumprir um plano de aprendizagem de tipo n+1. A regra a adoptar deverá ser sempre, então, usar o treino como forma de motivar a continuidade do treino, e nunca forçar nada. 

A grande vantagem deste método, já a referi: acabam-se as desculpas para se iniciar a fase dos castigos premeditados, acabam-se os pretextos para encetar a fase da "pressão activa", acaba-se o ressentimento perante os cães que, pretensamente, já sabem um comportamento só que, do alto da sua "teimosia", insistem em não cumprir. Numa palavra, acabam-se as razões para mantermos uma relação conflituosa com os nossos cães, e sublinham-se os motivos para fortificar uma relação baseada na cooperação. 
Muitas vezes ouvimos falar numa inevitabilidade de uma fase de pressão, na qual o cão deverá conhecer um certo nível de obrigação. Isto talvez seja legítimo se estivermos num esquema de treino que estipule um determinado comportamento como adquirido (os tais 80% ou 90%). Aí, como se dá um determinado comportamento como adquirido, torna-se muito difícil ultrapassar a fasquia a que se chegou, desde logo porque o nível de recompensas já não consegue motivar mais o cão. Então, torna-se necessário iniciar uma nova fase de "motivações", agora baseadas em castigos e pressões.
Mas, mediante o tipo de treino a que vimos denominando como n+1, ou diferencial, essa fase de pressões e castigos torna-se desnecessária. Por definição, desnecessária. Ao aumentarmos a fasquia do desempenho, o cão permanece motivado para realizar os comportamentos. Esta é a grande diferença.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Sentar? mas o que significa sentar?

«Ai, que grande que ele está. Já tem quê, 6 anos?»
«Oito, o Pedro já tem oito anos.»
«Oito?! Como o tempo passa...»
«É.»
«Mas então, já anda, quê?, no terceiro ano? Então já sabe ler, certo?»
«Sim, já.»
«Pronto. Tenho aqui uma cópia da Odisseia, queres que ta empreste para leres agora nas férias?»
«Não, obrigado.»
«Pedro! Não ligue, ele é muito teimoso... »


Lá porque um cão senta lá em casa, sem distracções por perto, e quando ouviu um barulho muito parecido com o que faz o saco de ração quando é aberto, isso não quer dizer que ele esteja preparado para se sentar num jardim, com 15 cães a correr em liberdade e um lago de patos ali à frente. Numa fase inicial, o cão poderá já responder bem ao comando 'senta' na cozinha, mas ainda ter alguma dificuldade em fazê-lo na sala, onde o piso é completamente diferente, por exemplo. Qualquer cão já poderá sentar perfeitamente numa situação de exercício ou treino, na qual ele se encontra altamente motivado e concentrado; mas esse mesmo cão poderá não sentar à primeira (nem à segunda, nem à terceira...) se tiver com os olhos e nariz postos noutro motivo de interesse qualquer. Para evitar este desfasamento entre diferentes situações, é preciso treinar adequadamente. Mas a questão é que não podemos inferir que o "cão sabe sentar" só porque já responde a esse comando em circunstâncias definidas. 
Então, a pergunta que se coloca é: quando é que podemos afirmar que o cão já sabe sentar? A resposta que eu prefiro já foi dada no texto anterior: essa não é uma boa questão. É infrutífero e até perigoso estabelecer este tipo de parâmetros e perguntas baseadas em "saber se o cão já sabe" isto ou aquilo. Se o cão já senta, em casa, 80% das vezes, mas apenas 20% das vezes na rua, que valor é que poderíamos dar, no cômputo geral, à resposta ao comando 'senta'? Que factor atribuir a cada um dos contextos? E se os 20% das vezes que se senta na rua tiver um grande diferencial entre vezes que se senta à noite e de manhã, entre as vezes que se senta num jardim, ou no passeio à frente de casa, etc.? Que valores podemos dar? Obviamente, este tipo de quantificação é absolutamente vago e inconsequente. Independentemente da boa vontade que esteja por detrás de afirmações do tipo "o meu cão já responde à chamada em 70% das vezes", a verdade é que este tipo de quantificação serve apenas como pretexto para que se inicie a fase das correcções, ou, como se costuma dizer pelo "meio", a fase da pressão. Tudo para polir os pontos percentuais que faltam para os 100. 
Tal como é muito diferente ler o texto do manual de leitura do 3.º ano e ler 600 páginas de um clássico literário, também é muito diferente para um cão responder a um comando dentro de casa ou num parque cheio de distracções. A questão, parece-me, passa por não estipular nenhum ponto definido que, uma vez atingido, nos permitisse dizer que o cão "já sabe" o comando em causa. Em vez disso, o aconselhável é pegar no que já se conseguiu transmitir e ensinar, e elevar a fasquia. Manter vivo e dinâmico o processo de aprendizagem do nosso cão. Em vez de assumir que o cão já sabe o comando e, a partir daí, começar a pressioná-lo para "melhorar" as suas respostas, penso ser preferível não cair nesse tipo de assunções e continuar o processo de educação. As pressões tornam-se desnecessárias, só é preciso saber motivar. Se se usou um tipo de motivação dito positivo para se chegar ao ponto dos tais - ilusórios - 80% de respostas, por que razão começar, a partir daí, um jogo de pressões e obrigações? Por que não manter o registo das motivações positivas para melhorar, e melhorar, e continuar a melhorar? Só mediante este método é que podemos entregar ao cão os limites da sua aprendizagem. Mediante o método que combina uma primeira fase de motivação com uma segunda fase de pressão (na qual o cão aprende a responder "por obrigação"), corre-se, entre outros, o sério risco de nos perdermos e deixar de distinguir os limites do próprio cão; isto porque, se estabelecemos os tais 80% como ponto de viragem no tipo de método usado, começa a tornar-se difícil reconhecer quando é que o cão já atingiu os seus limites, e quando já só está a responder por compulsão de escape (tradução livre para Escape and Avoidance Conditioning), ou seja, quando o cão já só responde pelo seu mecanismo que o faz evitar ou fugir de elementos de pressão stressante. 

A falta de necessidade da fase de pressões e obrigações começa na vagueza e ilusão em que consiste o pretenso ponto ideal a partir do qual poderíamos dizer que um cão sabe o que se lhe está a pedir. Uma vez mais: este é um fraco modelo para lidarmos com o comportamento de um cão. Nós podemos avaliar o nosso conhecimento de certas coisas em termos de saber. Mas na nossa espécie é possível avaliar um aspecto tão singular como o conhecimento independentemente da componente comportamento; isto é, avaliar o que sei sobre um determinado tema não implica nada, ou praticamente nada que se possa denominar comportamento. O mesmo não se passa com os nossos cães. Neles, há comportamento. E pronto. Logo, o que há, não é "saber ou não saber", mas motivação. Pura e simples motivação para o comportamento. O segredo de treinar um cão está na construção de uma paleta variada de formas de motivação, da qual poderemos sempre retirar uma que nos dê jeito numa determinada situação, e uma outra que nos dê jeito numa situação diferente. Com o tempo, é totalmente conveniente que desta paleta faça parte o nosso tom de voz. Com duas cláusulas: que saibamos revestir o nosso tom de voz de uma força motivacional normalmente associada a consequências naturalmente motivantes; e que essa forma de motivação seja apenas uma entre várias outras. 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Saber? mas o que significa saber?

Seria muito melhor se apagássemos esta palavra do nosso reportório de termos relativos à educação de cães. É muito pantanoso o terreno daquilo que um cão sabe e não sabe; nunca se sabe muito bem o que é que eles sabem, nem sabemos sequer se essa é uma forma fiel de representar o modo cognitivo de um cão. Saber? Hm, prefiro concentrar-me no comportamento, especificamente no comportamento.
É claro que podemos usar o termo 'saber' de forma lata, mesmo mantendo todas as interrogações que levantámos. Mas a questão é que o facto de lidarmos com o comportamento dos cães em termos de saber e não saber leva-nos a pontos que são tudo menos benéficos na nossa relação com eles. Leva-nos, por exemplo a moldar o tipo de castigos que usamos. Por exemplo, quando "achamos" que o nosso cão não sabe muito bem o que fazer, e faz algo de inconveniente, usamos formas de castigo mais leves (castigos positivos brandos, como time-outs ou repreensões brandas), ou limitamo-nos a interromper o comportamento inadequado (castigo negativo); mas quando "achamos" que o cão já sabe o que pretendemos e, ainda assim, faz algo inapropriado, a nossa tendência é ver nesse comportamento uma certa forma de desrespeito, e respondemos à altura, intensificando o castigo.
Ora, o problema em tudo isto é que a eficácia do castigo (única razão pela qual um castigo deve sequer existir) é subtilmente substituída por uma questão de justiça. Isto é, em vez de usarmos o castigo como forma simples de comunicar com o nosso cão e fazer com que o comportamento inadequado deixe de ocorrer no futuro (questão prática e de eficácia), passamos a usar o castigo como forma de estabelecer um certo equilíbrio justiceiro (questão moral e de ressentimento), do tipo: "ele sabe que está a proceder mal, logo, tem de sofrer consequências». E isto estende-se até à primeira fase de aprendizagem: num ápice, as razões pelas quais não estamos a castigar os nossos cães nas primeiras fases de aprendizagem também se tornaram razões de ordem moralista e de justiça: "oh, coitadinho, ele ainda não sabe".
Quando moralizamos a educação dos nossos cães e a envolvemos em preceitos justiceiros, estamos a antropomorfizar os nossos cães. É curioso que apenas se pense na humanização dos cães quando os donos os enchem de mimos e os sobre-protegem (muitas vezes, isto pouco ou nada tem de antropomórfico); mas, na verdade, há tanta ou mais humanização de cães na forma como eles são castigados...
Posto isto, o primeiro conselho ou afirmação de posição desta semana será o seguinte: deixe cair a preocupação em definir se o seu cão sabe ou não o comportamento em causa; não que seja uma falsa questão, mas é algo que não traz benefícios, e levanta perigos potenciais. Em vez de pensar em termos de "será que o meu cão sabe isto?", pense em termos de aperfeiçoamento contínuo do comportamento. Qual a importância de saber se o seu cão sabe o comportamento X comparada com a importância de treinar, repetir e aperfeiçoar esse comportamento?
O maior dos perigos em pensar em termos de "saber ou não saber" consiste na estipulação de um ponto ideal no qual o cão atinge esse "saber", e a partir do qual qualquer falha é vista como desobediência e já não como ingenuidade. Tal como se pretenderá ilustrar no próximo texto, esse ponto que determina o "saber" de um determinado comportamento é uma enorme ilusão, essa baliza é uma completa ficção. O pior é que é uma ficção que vai originar consequências bem reais.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

... e depois começam os castigos

«Em primeiro lugar, começamos por treinar os nossos cães apenas com recurso a recompensas. Esta é a fase em que ensinamos os comportamentos»
«Certo...»
«Depois, certificamo-nos de que o cão sabe o comportamento, isto é, certificamo-nos de que ele sabe o que o nosso comando quer dizer»
«Hm..., e quando é que isso acontece?»
«Quando o cão já responde a 80% dos comandos.»
«Hm,... e depois?»
«Aí começamos um trabalho de correcção do mau comportamento.»
 
Por esta altura, eu arriscaria dizer que o caro leitor estará à espera que nos concentremos nesta última afirmação. A expectativa criada na epígrafe levá-lo-á a pensar que este texto tratará da questão da correcção do mau comportamento, e da sua necessidade ou falta dela. Bom, de certa maneira, sim, podemos dizer que as correcções estarão na baila, mas apenas em modo residual.
O problema naquele diálogo epigráfico não reside na aplicação dos castigos correctivos, mas na afirmação que antecede essa aplicação e que a justifica. O problema de que se vai tratar está na ideia de que existe um momento determinado em que o cão sabe o comportamento. Melhor ainda, o problema está na interpretação dos 20% de falhas de resposta como demonstrações de desobediência. Numa palavra: vamos falar do grande equívoco que reside na ideia de que, quando um cão já responde a um número significativo de vezes a um comando, ele já sabe o que se pretende dele, e vamos falar no consequente, e ainda maior, equívoco de que sempre que o cão não responde ao comando que, pretensamente, já sabe, ele estará a entrar num incumprimento ou em desobediência.
 
Quatro notas prévias, que ajudarão a dar maior precisão ao intuito de todo este texto: (i) um treinador ou amador cultivado que segue um modelo como aquele exemplificado no texto epigráfico tem o mérito de conhecer e saber aplicar a lei geral de aprendizagem a treino do seu cão (basicamente, conhecer e saber aplicar a lei básica de que o comportamento é moldado em função do tipo de consequências que lhe seguem com mais frequência); (ii) um treinador ou amador cultivado que segue esse modelo de treino tem o segundo mérito de seguir um esquema educativo do cão no qual estabelece um ambiente propício para situações de treino, e não se limita a ir educando o seu cão à medida que os dias vão passando e os problemas surgindo; (iii) não se pretende, de todo, insinuar sequer que não se deve corrigir o mau comportamento; e (iv) o tipo de correcção aplicada administrada àqueles 20% de "falhanços" tanto pode ir do mero castigo negativo ou da repreensão verbal, até ao esticão mais rude de estranguladora, passando por formas leves de "time-outs" ou choques eléctricos de intensidade reduzida. Não interessa. O problema não são os castigos; o problema não está na conclusão de que teremos de passar a uma fase de castigos ou de pressão. O problema está na premissa que motiva essa conclusão: o problema está na ideia de que um cão sabe o que se espera dele quando atinge uma determinada taxa de sucesso na resposta a um determinado pedido/comando, e que quando a resposta não surge (ou surge de forma desajustada), o cão simplesmente está a desrespeitar, de alguma forma, a indicação que lhe foi dada. E essa conclusão, já a vi ser elaborada tanto por treinadores que usam predominantemente formas de castigos como motivação para o treino, quanto por treinadores especialmente concentrados nas recompensas.
 
É por isso que considero urgente recuar um passo no raciocínio, e analisar séria e criticamente aquela premissa que nos dirige para esta conclusão precipitada. É preciso questionar o que é isso de o cão "saber" um comportamento, e compreender os potenciais perigos desta ilação. É isso que se tentará fazer aqui no abacaxi ao longo desta semana.

sábado, 24 de agosto de 2013

Imagine, uma vez mais

Imagine, hoje, que tinha um cão que era um candidato a ser cão de assistência. Tal cão cumpria todos os requisitos exigidos com a excepção feita para a forma como se relacionava com outros cães. Para passar num eventual teste que lhe conferiria o estatuto desejado, faltar-lhe-ia dar provas de que seria capaz de lidar com a presença próxima de outros cães. Mas, para já, tratava-se de um cão reactivo perante cães estranhos.
Posto isto, decide contratar os serviços de um profissional que ajudasse o caro leitor a tornar o seu imaginário cão num cão amigável para os outros cães.
Agora imagine que todo o trabalho realizado nesse sentido consiste numa única sessão na qual o seu cão seria levado para junto de um grupo de dezenas de outros cães, sem qualquer apresentação ou exposição gradual. Imagine que nessa sessão, previsivelmente, o cão imaginário permanece absolutamente tenso de princípio ao fim e, eventualmente, chega mesmo a haver uma escaramuça com um dos outros cães.
Por fim, imagine que o teste decisivo para o seu cão se tornar um cão de assistência consistia em levá-lo para um ambiente de lojas comerciais, onde já havia provado ter um comportamento exemplar. Sem surpresas, o seu cão passa o teste. O treinador imaginário que havia contratado declara o caso como extremamente bem sucedido.
 
Ora, como é que reagiria o caro leitor perante esta situação?
 
Concordaria com o profissional, e acharia que todo o caso havia sido bem trabalhado e teria chegado a fins bem sucedidos?
Ou acharia que o seu cão continuava com o mesmíssimo problema que tinha no início do processo?
 


quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Que horas são?

«Bom, depois de sair de casa, tanto faz demorar 15 minutos como duas horas; o seu cão não notará diferença.»
«Ai, sim? Mas então porquê?»
«É que os cães não têm percepção do tempo.»
«Ah...»

O que é mais espantoso neste diálogo nem é a falsidade da afirmação acerca da percepção do tempo que os cães têm ou deixam de ter; o mais espantoso é a forma como esta e outras afirmações são feitas sem qualquer tipo de fundamento adequado. 
A última vez que ouvi alguém dizer que os cães não têm percepção do tempo, perguntei à pessoa se baseava essa afirmação em algum dado minimamente fundamentado, se tinha lido isso em algum lado; a resposta foi qualquer coisa como:

«...eu não preciso de ler nada; quando falo não é com base no que leio, mas com base na experiência que tenho com os meus cães.»

Isto, quanto a mim, reproduz com extrema fidelidade a razão que leva à formação de grande parte dos mitos relativos à educação de cães. As pessoas universalizam aquilo que é e só pode ser relativo e particular; as pessoas elevam à qualidade de lei aquilo que obtêm na própria experiência. As consequências são muito graves.
Não há nada de mal em dizermos que "todos os meus cães" preferiram frango a salsicha; tudo bem. Outra coisa bem diferente é dizermos que, normalmente, "todos os cães" preferem frango a salsicha. Este tipo de afirmação a tender para o universal e de teor objectivo só pode resultar de estudos controlados e rigorosos; não pode, nunca, basear-se num conjunto muito limitado de experiências, muito menos quando essas experiências não obedecem a uma só exigência de cientificidade. 
Quando, numa discussão acerca de comportamento de cães, se introduzem conteúdos científicos e se apela a uma atitude crítica, normalmente é-se acusado de arrogância e esterilidade. Ora, arrogante é aquele que ambiciona formar um tipo de conhecimento dispensando aquilo que os outros têm para dizer, nomeadamente quando o outro é o corpo da ciência. Estéril é o diálogo entre dois indivíduos que baseiam as ideias que debatem no que "sempre ouviram dizer". Uma coisa é desconhecermos alguma coisa, de forma inocente, e incorrermos em certos enganos por causa desse desconhecimento: não há mal nenhum; fazemo-lo a toda a hora, a respeito de qualquer tema. Outra coisa bem diferente é construirmos uma série de "conhecimentos" sobre um tema com base numa arrogante insistência em não querer saber o que é que a ciência realmente diz acerca desse tema. Podemos até discordar do que é dito no discurso científico; não podemos é dar-nos ao luxo de ignorá-lo e achar que sabemos tudo. E, já agora, para discordar desse discurso, convém que me apoie numa base sólida e crítica. Convirá que me informe. Tal como já disse neste blog: não é por ter um convívio diário com os meus dentes há já muitos anos que posso ambicionar ter conhecimento acerca da ciência dentária...

Mas, e então, os cães têm ou não percepção do tempo?

Se, em vez de cedermos à tentação de ir na corrente do diz-que-disse-com-ares-de-pensamento-contra-corrente, puséssemos realmente o nosso espírito crítico a funcionar, facilmente concluiríamos que, muito provavelmente, algum tipo de percepção diferencial do tempo os cães deverão ter. Se os cães não tivessem, de todo, percepção do tempo, não haveria todos estes vídeos de cães que ficam em êxtase quando se reencontram com os seus donos que partiram e estiveram ausentes durante meses. Se não tivessem qualquer tipo de percepção do tempo, não haveria dificuldade em deixar os nossos cães em casa por longos períodos, e não haveria cães com ansiedade por separação. Deixar um cão sozinho por cinco minutos e deixá-lo por quatro horas não é a mesma coisa, e ninguém com o mínimo de sensatez poderá negá-lo. Quanto mais não fosse, as necessidades físicas de urinar, defecar e alimentar-se dariam ao cão algum tipo de impressão da duração e da passagem do tempo. 
Mas se o espírito crítico do caro leitor estiver enferrujado, e precisar de mais dados acerca do tema, então vejamos. Patricia McConnell dedica um "post" do seu precioso "blog" a este tema. Nele, menciona-se um estudo elaborado por Therese Rehn e Lindsay Keeling no qual se reuniu uma amostra cientificamente significativa de cães que foram deixados sozinhos em casa por períodos de 30 minutos, 2 horas e 4 horas. Entre outras conclusões, descobriu-se que a diferença da reacção dos cães à chegada dos respectivos donos varia muito quando eles estão sozinhos apenas por 30 minutos e quando a ausência dos donos é de duas horas. Curiosamente, a reacção não difere, em termos práticos, das duas para as quatro horas de ausência. Ora, 30 minutos, claramente, não são o mesmo que duas horas. E como interpretar a indistinção nas reacções que os cães tiveram quando deixados sozinhos 2 horas e quando deixados sozinhos 4 horas? Podemos ter aqui uma certa prova de que a percepção do tempo que os cães têm é diferente da nossa; mas será que as nossas reacções são assim tão diferentes quando alguém que amamos demorou 2 horas ou 4 horas a voltar? 
Bom, que as percepções do tempo que nós temos e aquela que os cães têm serão muito provavelmente diferentes, é algo que todos nós aceitaremos quase sem pensar. Afinal, mesmo dentro de culturas diferentes da espécie humana, a percepção do tempo é tida como sendo diferente. Por que não o haveria de ser entre membros de espécies diferentes? Mas o facto de os cães terem percepção do tempo diferente da dos humanos não significa, de todo, que não tenha qualquer tipo de percepção do tempo.


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Centrão, quinta e última parte

«...pois é, e também não podemos nunca estar por debaixo deles, senão eles pensam que mandam lá em casa».

Os meus olhos deverão ter saído das órbitas quando me voltei para ver qual o genial proferidor de não menos genial afirmação, e reparei que o mesmo era nada mais nada menos do que dono de um Dogue Alemão. As dificuldades por que aquela família não deve passar... apertar atacadores e apanhar coisas do chão estão absolutamente fora de questão. Pelo menos com o cão por perto. E imagino a altura em que as camas e sofás não estarão!

Ora bem, este último dos textos dedicados à ideologia do meio-termo vai incidir sobre as práticas concretas que fazem com que um dono se estabeleça como alfa e não como outra letra qualquer. 90% das vezes que este discurso é proferido, ele é revestido por uma essencial vagueza. Tudo é uma questão de se ser líder da matilha; mas tanto o que é isso do líder da matilha quanto a forma como um dono chega a tal ascético pedestal permanecem numa irremediável vagueza de explicações. Temos de ser calmos; temos de ser assertivos; temos de emanar uma energia de líder; temos de manter uma postura corporal de líder. Bom, a menos que o caro leitor seja fã de livros de auto-ajuda espiritual e navegue pelas hordas da New Age, estou certo de que a única reacção que estas expressões lhe sugerirão serão um valente bocejo de desprezo. Vago. Vago. Vago. E vago. Tais directrizes não querem dizer absolutamente nada de concreto.
E quando pedimos para que este discurso seja mais concreto, que brilhantes são as pérolas com que nos brindam.

Para tentar manter a seriedade no tema, recorramos à fonte que, apesar de tudo, ainda merece respeito na forma crítica, sistemática e frontal como tenta abordar o assunto do treino de cães (embora nem sempre o consiga).
Segundo o sistema Leerburg, um líder de matilha tem de comer sempre antes dos outros membros. Esta é uma das leis mais firmes e conhecidas desta "ideologia". Tanta e tanta gente pensa e pratica esta lei. O que acontece quando o líder da matilha não tem fome, mas já são horas de dar a comida ao canito? O líder da matilha entafulha-se com uma sandes improvisada só para manter a mensagem para o seu cão? Ou chegam umas bolachitas de água e sal? Um copo de água certamente não será suficiente, mas e se tiver umas vitaminas, será que o cão já considerará que está a comer depois do seu líder? Ou poderemos estar a cair no gravíssimo perigo de o nosso cão perceber que, afinal de contas, ele é que é o líder? O líder da pessoa que acabou de lhe dar a comida, note-se... E então o que acontece nas famílias que têm horários diferentes? Todos os membros da família devem estar acima do cão na hierarquia, certo? Então devem comer todos ao mesmo tempo, e o cão depois? Mas e quando um dos elementos não está? O filho que foi jantar fora, ou a filha que está em casa de uma amiga... Eles jantam por skype, para que o cão tenha a certeza que come depois deles? (Curiosamente, Ed Frawley resolve este problema facilmente: o resto da família não é líder do cão; só ele. Eu pergunto: ora, se só um membro da família é o líder, e se ser o líder da matilha é condição exclusiva para que o cão não se torne num feroz canino dominante, então não será agressiva e dominantemente que esse cão irá interagir com o resto da família?)
Outra coisa curiosa: o sistema Leerburg defende o "crate training" como forma de limitar as liberdades iniciais do cão ou cachorro que chega a nossa casa; e a forma de fazê-lo passa por alimentar o cão de cada vez que o queremos colocar lá dentro. Partindo do princípio que o cão não vai passar 7 ou 8 horas metido numa caixa-transportadora, ele vai entrar e sair várias vezes da "crate" ao longo do dia. Ora, imagine a quantidade de lanches que o caro leitor não vai ter de fazer para comer sempre antes do seu cão...

Uma outra lei: "não deixar ninguém fazer festas ou dar guloseimas ao meu cão; eu, enquanto líder, sou o único que o farei". Portanto, basicamente a ideia é eu ser o líder do meu cão por ausência de concorrência. Pelo sim pelo não, mais vale não deixar ninguém interagir com o meu cão, não vá ele gostar mais desse completo estranho que nunca viu na vida do que de mim. Isto é um líder firme e seguro? Epá, isto, no meu dicionário, é o sinal mais evidente de extrema insegurança.
A ideia, diz Frawley, é fazer do dono o centro do universo do cão. Isto até pode resultar sem problemas graves no caso de treinadores de cães e de outros que dedicam a quase totalidade do seu tempo para o seu cão. Mas para o resto dos comuns e mortais donos de cães, as horas diárias que o cão compartilha com o seu dono não são assim tantas; achar que uma pessoa que trabalha 7 horas por dia, dorme outras 7, ainda perde 2 horas em viagens, e ainda tem de fazer compras, levar e trazer o filho da escola vai ser o centro do universo do seu cão é sentença certa para que a vida e o ambiente desse cão sejam extremamente pobres. O donocentrismo é uma condição maligna de que muitos cães padecem; e muitos donos também. O mundo do seu cão não começa e acaba no dono - e ainda bem. Um cão com medo do camião do lixo não está a reflectir nenhuma insegurança do dono. O cão não é uma extensão do dono. Tem personalidade própria; tem gostos próprios; tem medos próprios. O dono pode é ajudar o cão a lidar com tudo isso. Mas não como se ele fosse uma extensão sua.
Impedir que o seu cão seja acariciado por estranhos, além de idiota em si própria, é uma ideia que vai resultar num cão muito mal socializado num futuro próximo. Depois quando o vosso cão morder a mão de uma pessoa que se aproximar, não estranhem... Nem reclamem: foi tudo a bem de se constituírem como o centro do universo do vosso cão. Haja boas prioridades.

Uma terceira, e mais conhecida lei: nunca deixar o cão passar primeiro nas portas. Frawley, tal como tantos outros, afirma que passar primeiro nas portas «embora possa parecer insignificante para nós, é coisa muito importante para um cão em termos de respeito». Eu pergunto: mas o que é que fornece tanta certeza a esta afirmação? Por que razão podemos afirmar que isto de passar em primeiro pelas portas é tão importante para um cão "em termos de respeito"? Este tipo de afirmações não se pode fazer sem que, pelo menos, haja acesso à contra-prova, ou seja, haja acesso ao comportamento que têm os cães que passam primeiro nas portas. Deduzindo que o próprio Frawley nunca tenha deixado os seus cães passar primeiro nas portas, para não correr o risco de ter de lidar, daí em diante, com um Führer de quatro patas lá por casa, eu de boa vontade poderei apontar alguns exemplares que passam nas portas primeiro que os donos, nomeadamente o meu próprio cão. Deixar um cão passar primeiro nas portas pode ser problemático ou mesmo perigoso; mas não por uma qualquer razão nebulosa ou mística. Se um cão sai disparado quando abrimos a porta de casa, isso pode causar problemas. Mas esses problemas estão directamente relacionados com a saída disparada pela porta fora; não tem nenhuma repercussão com uma pretensa relação hierárquica. Se o dono pretende algum rigor ou disciplina à porta, então ensine o seu cão a sentar e a esperar que o dono dê um sinal que permita que o cão passe na porta. Simples e directo.
Além de infundado e particularmente lunático, este princípio não é cumprido por ninguém. Desculpem lá, mas eu não acredito que alguém, quando chega a casa e tira a trela ao seu cão, ande sempre à frente deste quando ele vai beber água à cozinha. "Ups, o Faísca entrou na sala, e eu ainda estou no corredor; é melhor esperar um ou dois minutos antes de entrar na sala, senão ele pode achar que eu estou a entrar depois dele, e começa a achar que é o líder". Aliás, o próprio Ed Frawley não cumpre esta "lei": neste vídeo, no mínuto 3'42'', Frawley passa pela porta ao mesmo tempo que o seu cão (qual será a lição do cão?... será que estão empatados no grande campeonato da liderança alfa?), mas, logo a seguir, o cão passa muito primeiro pelo portão do exterior. Será que esta lei é apenas válida para as portas do interior? Ou será que aquele tipo de porta também conta e, a partir daquele dia, o Snickers se tornou o líder lá de casa?

Não nos podemos esquecer daquela que é provavelmente a mais clássica das leis da liderança de matilhas. Nos passeios, devemos sempre andar à frente ou, quando muito, ao lado dos nossos cães. Nunca atrás. Ou seja, os cães cujos donos praticam Canicross são sempre os líderes da matilha...
Aliás, o que é que determina a liderança? Se um cão passear 20% do tempo já pensará que é o líder? E se for 10%? "olha, neste momento o cão vai à sua frente, está a pensar que é o líder... olha, olha, agora não, já não pensa que é o líder...". 

Depois, claro, a lei das altitudes (ponto 8), exemplificada na epígrafe deste post. Diz esta "lei" que o líder, «enquanto humano, nunca deverá colocar-se a si próprio numa altura igual ou inferior à do cão». Eu juro que cada vez mais acredito que os inventores destas leis não vivem nem nunca viveram com um cão. Durante um dia inteiro, vai haver uma ou outra altura em que o dono vai ter de se baixar. "oh querida, tira lá o bolinhas aqui da sala, porque eu vou ter de apanhar as pilhas do comando que foram para debaixo do sofá". Mas o que é que esta gente acha que se passa dentro da cabeça de um cão? "uh la la, queres-me ver esta agora? O meu dono (ou melhor, ex-dono) está ali deitado no chão... então não é que eu sou o novo líder desta casa? As coisas vão mudar a partir de agora.. oh, não, o meu dono já se levantou, já não sou o líder... oh, calma, ele baixou-se outra vez, voltei a ser, oh, já voltei a ser um cão, novamente... foi bom enquanto durou". Enfim.

Por fim, o jogo do sério (ponto 2). Segundo esta lei, devemos olhar directamente nos olhos do nosso cão e ser os últimos a desviar o olhar; deve ser o cão a desviar o olhar em primeiro lugar. Basicamente, vamos jogar ao sério com o nosso cão. Quem ganhar é o líder. De quem é a mente infantil que inventa estas regras? Por que não alargar o espectro dos jogos? Fazer uma espécie de olimpíadas da matilha; o vencedor sagra-se o líder da matilha. Podemos começar por jogar à sardinha; depois, as escondidinhas, a apanhada, e não esquecer o jogo do lencinho. Tudo menos o Tug-of-war (ponto 18); isso é que não; se o cão ganhar, meu deus, aí ele fica a achar que é o super-alfa lá do prédio. Já agora, se este pessoal divertido se entretivesse a estudar comportamento canino em vez de andar a inventar coisas, iria saber o que significa o olhar fixo nos olhos de um cão: é um sinal invasivo e ameaçador. Quando olhar para o seu cão olhos nos olhos, fixamente e prolongadamente, não está a dizer-lhe "eu sou o teu líder"; está a dizer-lhe "eu sou uma ameaça". É essa a mensagem que quer transmitir para o seu cão? Não?, então não perca o tempo com baboseiras de revistinha e leia sobre comportamento canino real. O seu cão agradecerá.

A lista poderia continuar quase indefinidamente. Basta a imaginação querer. Se a mentalidade dos nossos cães fosse tal que se predispusesse a analisar cada um dos nossos actos como sinais de liderança ou submissão, eu colocaria aqui a questão pertinente que Jerry Seinfeld colocou já há cerca de 20 anos: como é que os nossos cães, esses seres hierárquicos e sempre atentos aos nossos sinais de liderança, verão a forma como nós apanhamos os cocós? Não parece uma atitude lá muito de líder da matilha andar com saquinhos a apanhar os serviços que os nossos cães fazem, pois não? Além disso, não conheço nenhum cão ou lobo que ande a apanhar os cocós dos seus "seguidores". Espero não estar aqui a dar ideias; não tarda, algum dos cultores da ideologia da matilha ainda se lembra de divulgar na sua igreja que apanhar cocós dos cães é sinal de submissão, e pronto, lá vão as nossas cidades voltar a ficar apinhadas de dejectos. Tudo a bem da estrutura da matilha!

Aquilo que é importante a reter é o seguinte: nunca, ninguém, em circunstância alguma conseguiu dar uma indicação concreta, sensata e com sentido de como é que o dono se estabelece enquanto líder da matilha. Nunca. Quando alguém fala nisto do líder da matilha, normalmente o discurso versa sobre medidas e ideias absolutamente vagas: transmissão de energias, estar calmo e assertivo, ter mentalidade de líder, etc. E quando se pede por algo mais concreto, algo que se possa, realmente, fazer, invariavelmente o discurso vai parar a este tipo de preceitos absolutamente absurdos e infundados. Comer primeiro do que o cão não vai ter absolutamente nenhum reflexo no resto dos comportamentos desse mesmo cão. Se quer que o seu cão preste mais atenção naquilo que lhe diz, trabalhe esse aspecto em específico. Se quer que o seu cão não puxe a andar à trela, trabalhe esse aspecto em específico. Se quer que o seu cão não ladre tanto, trabalhe esse aspecto em específico. A resposta é sempre treino. Não há outra hipótese, por muito atractivos e encantadores que sejam os discursos que promovem essas alternativas holísticas. 

O grande problema destas propostas é a sua incoerência lógica. Qual é o objectivo: ter um cão que obedeça ao seu dono. Como fazer: o dono estabelece-se como líder. Como é que se estabelece como líder: fazendo o cão obedecer. Ou seja: temos de dar sinais de liderança para sermos o líder para que o cão obedeça. E que tal ensinar ao cão qual é o comportamento pretendido? Quer que o seu cão sente quando lhe diz para sentar? Então ensine-o a sentar. Simples e directo. 
"Ah, mas o meu cão sabe sentar; só que não senta sempre; eu quero que ele sente sempre que eu lhe digo, e para isso, é preciso que ele saiba que eu sou o líder". Não, se o seu cão apenas senta de vez em quando, então não sabe "sentar"; não foi bem ensinado. O problema não está no facto de o seu cão não o ver como líder; o problema está no facto de lhe ter ensinado mal. Uma criança que saiba escrever, não saberá, necessariamente, compor um texto de duas páginas sem erros e com sentido. E se ela não o sabe não é por desrespeito aos pais ou aos professores; é porque ainda não aprendeu a fazê-lo. Para um cão, 'sentar' é o mesmo que 'escrever': sentar na sala, sem distracções e enquanto o dono lhe promete um biscoito é fácil, é como uma criança escrever o próprio nome. Mas sentar num parque com 20 cães à volta, isso já é coisa parecida a escrever um ensaio literário. Logo porque sei escrever, não quer dizer que consiga escrever um conto; logo porque um cão saiba sentar, não quer dizer que seja capaz de sentar em qualquer circunstância. Não é uma questão de liderança ou de respeito: é uma questão de treino. 
Já chega de desculpas para não treinar o seu cão.