quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Sentar? mas o que significa sentar?

«Ai, que grande que ele está. Já tem quê, 6 anos?»
«Oito, o Pedro já tem oito anos.»
«Oito?! Como o tempo passa...»
«É.»
«Mas então, já anda, quê?, no terceiro ano? Então já sabe ler, certo?»
«Sim, já.»
«Pronto. Tenho aqui uma cópia da Odisseia, queres que ta empreste para leres agora nas férias?»
«Não, obrigado.»
«Pedro! Não ligue, ele é muito teimoso... »


Lá porque um cão senta lá em casa, sem distracções por perto, e quando ouviu um barulho muito parecido com o que faz o saco de ração quando é aberto, isso não quer dizer que ele esteja preparado para se sentar num jardim, com 15 cães a correr em liberdade e um lago de patos ali à frente. Numa fase inicial, o cão poderá já responder bem ao comando 'senta' na cozinha, mas ainda ter alguma dificuldade em fazê-lo na sala, onde o piso é completamente diferente, por exemplo. Qualquer cão já poderá sentar perfeitamente numa situação de exercício ou treino, na qual ele se encontra altamente motivado e concentrado; mas esse mesmo cão poderá não sentar à primeira (nem à segunda, nem à terceira...) se tiver com os olhos e nariz postos noutro motivo de interesse qualquer. Para evitar este desfasamento entre diferentes situações, é preciso treinar adequadamente. Mas a questão é que não podemos inferir que o "cão sabe sentar" só porque já responde a esse comando em circunstâncias definidas. 
Então, a pergunta que se coloca é: quando é que podemos afirmar que o cão já sabe sentar? A resposta que eu prefiro já foi dada no texto anterior: essa não é uma boa questão. É infrutífero e até perigoso estabelecer este tipo de parâmetros e perguntas baseadas em "saber se o cão já sabe" isto ou aquilo. Se o cão já senta, em casa, 80% das vezes, mas apenas 20% das vezes na rua, que valor é que poderíamos dar, no cômputo geral, à resposta ao comando 'senta'? Que factor atribuir a cada um dos contextos? E se os 20% das vezes que se senta na rua tiver um grande diferencial entre vezes que se senta à noite e de manhã, entre as vezes que se senta num jardim, ou no passeio à frente de casa, etc.? Que valores podemos dar? Obviamente, este tipo de quantificação é absolutamente vago e inconsequente. Independentemente da boa vontade que esteja por detrás de afirmações do tipo "o meu cão já responde à chamada em 70% das vezes", a verdade é que este tipo de quantificação serve apenas como pretexto para que se inicie a fase das correcções, ou, como se costuma dizer pelo "meio", a fase da pressão. Tudo para polir os pontos percentuais que faltam para os 100. 
Tal como é muito diferente ler o texto do manual de leitura do 3.º ano e ler 600 páginas de um clássico literário, também é muito diferente para um cão responder a um comando dentro de casa ou num parque cheio de distracções. A questão, parece-me, passa por não estipular nenhum ponto definido que, uma vez atingido, nos permitisse dizer que o cão "já sabe" o comando em causa. Em vez disso, o aconselhável é pegar no que já se conseguiu transmitir e ensinar, e elevar a fasquia. Manter vivo e dinâmico o processo de aprendizagem do nosso cão. Em vez de assumir que o cão já sabe o comando e, a partir daí, começar a pressioná-lo para "melhorar" as suas respostas, penso ser preferível não cair nesse tipo de assunções e continuar o processo de educação. As pressões tornam-se desnecessárias, só é preciso saber motivar. Se se usou um tipo de motivação dito positivo para se chegar ao ponto dos tais - ilusórios - 80% de respostas, por que razão começar, a partir daí, um jogo de pressões e obrigações? Por que não manter o registo das motivações positivas para melhorar, e melhorar, e continuar a melhorar? Só mediante este método é que podemos entregar ao cão os limites da sua aprendizagem. Mediante o método que combina uma primeira fase de motivação com uma segunda fase de pressão (na qual o cão aprende a responder "por obrigação"), corre-se, entre outros, o sério risco de nos perdermos e deixar de distinguir os limites do próprio cão; isto porque, se estabelecemos os tais 80% como ponto de viragem no tipo de método usado, começa a tornar-se difícil reconhecer quando é que o cão já atingiu os seus limites, e quando já só está a responder por compulsão de escape (tradução livre para Escape and Avoidance Conditioning), ou seja, quando o cão já só responde pelo seu mecanismo que o faz evitar ou fugir de elementos de pressão stressante. 

A falta de necessidade da fase de pressões e obrigações começa na vagueza e ilusão em que consiste o pretenso ponto ideal a partir do qual poderíamos dizer que um cão sabe o que se lhe está a pedir. Uma vez mais: este é um fraco modelo para lidarmos com o comportamento de um cão. Nós podemos avaliar o nosso conhecimento de certas coisas em termos de saber. Mas na nossa espécie é possível avaliar um aspecto tão singular como o conhecimento independentemente da componente comportamento; isto é, avaliar o que sei sobre um determinado tema não implica nada, ou praticamente nada que se possa denominar comportamento. O mesmo não se passa com os nossos cães. Neles, há comportamento. E pronto. Logo, o que há, não é "saber ou não saber", mas motivação. Pura e simples motivação para o comportamento. O segredo de treinar um cão está na construção de uma paleta variada de formas de motivação, da qual poderemos sempre retirar uma que nos dê jeito numa determinada situação, e uma outra que nos dê jeito numa situação diferente. Com o tempo, é totalmente conveniente que desta paleta faça parte o nosso tom de voz. Com duas cláusulas: que saibamos revestir o nosso tom de voz de uma força motivacional normalmente associada a consequências naturalmente motivantes; e que essa forma de motivação seja apenas uma entre várias outras. 

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