domingo, 4 de agosto de 2013

Centrão, quarta parte


«Se quisermos um verdadeiro cão obediente e equilibrado, não basta ensinar-lhe comandos e comportamentos; temos de nos afirmar como o líder da matilha; o nosso cão tem de nos ver como o seu líder.»
«Mas, se quando eu digo "senta", ele senta, e quando eu digo "aqui", ele vem, isso não significa já que o meu cão responde aos meus pedidos?»
«Errr, sim, ou melhor, ..., não. Na verdade ele pode só estar a responder por interesse. Convém que, paralelamente, se estabeleça uma hierarquia bem definida em que o dono se assuma como líder alfa»
«Mas se ele responde aos meus comandos, como é que o meu cão poderá achar que está acima de mim na hierarquia?»
«Ele pode não responder em outras situações.»
«E não deveríamos treinar também essas situações de modo a que ele passe a responder também nessas?»
«Sim, mas ele só vai responder verdadeiramente se nos reconhecer com líder.»
«Então, ele reconhece-me como líder nas coisas em que me responde, mas não me reconhece nas coisas a que não responde? Isso não significa apenas que houve coisas que já treinámos e outras que não?»
«Como assim?»
«Se o meu cão responde quando eu digo "senta", isso não significa que ele já me reconhece como líder?»
«Não, se ele responder apenas por interesse.»
«Então, se não é por interesse, de que outro modo é que o meu cão deve responder aos meus pedidos? Pela força?»
«Não, não! Um verdadeiro líder nunca ou raramente usa a força.»
«Então usa o quê?»
«Respeito.»
«Ah, então todas essas estranguladoras são para... impor respeito?»
«Err, sim, se necessário.»
«Estou a ver, estou a ver. Mas então que passos concretos é que temos de dar para nos afirmarmos como líder.»
«Ouça lá, quem é o especialista, aqui? Quer o senhor queira, quer não, os cães têm necessidade de viver numa estrutura na qual exista um líder; se nós não nos assumirmos como o líder, assumem os cães.»
«Bom, não vamos perder tempo. O que é que vamos fazer hoje?»
«Vamos trabalhar a chamada...»

  • Treino vs. comportamento equilibrado
A meu ver, hoje irá ser abordado um dos maiores e mais melindrosos mitos que se tem espalhado pelas cabeças de quem se envolve na educação dos seus cães. É extraordinariamente comum ouvirem-se diálogos como o da epígrafe deste texto. É muito frequente ouvirmos pessoas a dizer coisas como "Oh, não quero que o meu cão saiba uma série de coisas, não quero ensinar-lhe uma bateria de comandos e truques. O que quero é que ele se comporte bem e que me respeite". 
É um facto que existem vários cães que têm um conjunto significativo de truques e comportamentos complexos no seu repertório, mas que, em contrapartida, acumulam alguns problemas comportamentais. Não são poucos os cães com forte desempenho em obediência competitiva e com problemas como, por exemplo, ansiedade por separação; cães que intercalam sessões inteiras de resposta a pedidos de comportamentos complexos com demonstrações de agressividade perante outros cães. Isto é bem verdade. Mas não podemos tomar estes factos como premissas para concluir que treinar um cão é coisa distinta de dar estrutura e equilíbrio ao seu comportamento. Numa palavra, há uma ideia muito enraizada de que uma coisa é ensinar o cão a sentar, a deitar e a dar a patinha, e outra bem diferente é ter um cão que respeite o dono quanto dono, e que se saiba comportar em casa e na rua. 
Trata-se de uma ideia tanto mais enraizada que ela é não é apenas difundida por entre os comuns donos de cães. Não; ela é também difundida por especialistas de comportamento, por treinadores profissionais. Tal ideia chega mesmo a ser o slogan de alguns destes profissionais. O objectivo de hoje do Abacaxi é desconstruir esta ideia desde a sua base; demonstrar o seu ridículo e a sua falta de fundamentação: numa palavra, o objectivo é esclarecer, do modo mais definitivo possível, em que é que consiste o treino de cães e o quão importante e insubstituível ele é para que a relação dos cães com os seus donos seja a melhor possível.
Voltemos ao texto de que nos temos servido para exemplificar os princípios da ideologia do meio-termo no treino de cães. Nesse texto, Ed Frawley escreve uma frase que se torna bastante emblemática acerca da forma como o próprio encara a educação de cães: «A maioria dos problemas comportamentais surge como resultado de uma fraca estrutura de matilha no ambiente em que o cão vive. Por essa razão, nós dizemos às pessoas que treino de obediência representa apenas 25% da solução para corrigir problemas comportamentais, e 75% da solução tem a ver com o estabelecimento de uma sã estrutura de matilha». Não importa tanto notar qual o relevo e quais os valores que Ed Frawley concede ao treino e à estrutura de matilha; o que importa é que é feita uma separação entre as duas coisa. Conforme veremos de seguida, não existem duas coisas. Tudo é uma questão de treino, e treino é educação. Toda a história de um estabelecimento de hierarquia estrutural é uma invenção, uma grande invenção. Vejamos aquilo em que Ed Frawley baseia a sua ideia de estabelecimento de uma estrutura de matilha, e veremos se existem ou não razões para fazer uma distinção entre isso e o treino de cães.

Diz Ed que, «quando a pergunta se relaciona com a forma de criar um vínculo, ganhar respeito e ser capaz de manter a liderança em relação aos nossos cães, a resposta é ter a certeza de que o cão compreende que nós seremos sempre justos para com ele. Assim sendo, o cão tem a responsabilidade de responder perante coisas que já conhece, e, se ele recusar, irá haver consequências».
Bom. Isto não se difere em nada do princípio básico do treino de cães. Pode haver alguma variação nos termos escolhidos (eu, por exemplo, preferiria não usar "recusa" ou mesmo "responsabilidade") , mas, em termos basilares, esta é uma forma de definir o princípio básico do treino: não esperar coisas que ainda não ensinámos; providenciar consequências ajustadas para o comportamento ocorrido. Isto é treino. Ponto. Até aqui, ainda não se vê qualquer razão para distinguir treino de estabelecimento de liderança e respeito. Até aqui, a coisa parece ser uma e uma só. Mas pode ser que mais para a frente haja uma distinção real das coisas. Vejamos.

«Ao longo da experiência ganha em treino, nós demonstramos ao cão que apenas vamos pedir-lhe coisas que ele saiba fazer. Quando ele faz algo correctamente, nós fazemos sempre algo de bom para eles. Da mesma forma, quando ele faz algo incorrecto, nós deixamos-lhe SEMPRE claro que ele cometeu um erro».
Hm, pois, continuamos no mesmo ponto. Isto não é outra coisa senão treino. Pura e simplesmente treino. Aprender segundo as consequências é a ideia mais básica da lei da aprendizagem, fundada nos princípios do condicionamento operante. Usar esses princípios para ensinar o nosso cão alguma coisa (seja 'sentar', 'ladrar', 'dar a pata', subir ou descer do sofá, esperar pela comida, não saltar para as visitas, qualquer coisa) é treino. Não adianta vestir a coisa de palavras diferentes, chamar-lhe estrutura de matilha ou o diabo a quatro. Isto é treino. Ponto. Até agora, ainda não há razões para criar qualquer tipo de folclore em torno de uma figura mitificada - o dono alfa. Mas pode ser que ainda haja. Continuemos em busca desses princípios concretos que justifiquem a existência dessa estrutura de matilha e desse líder da matilha.

«O cão deve aprender que nós somos 100% consistentes na forma e no momento em que administramos correcções. Ser consistentes a toda a hora é uma das componentes mais importantes de se ser um líder da matilha. Por exemplo, nós não podemos ignorar um comportamento agressivo perante um convidado em nossa casa e, depois, corrigir o nosso cão quando ele for agressivo durante um passeio.» Ou seja, temos de providenciar sempre o mesmo tipo de consequências para o mesmo tipo de comportamentos. De outra forma, o nosso cão terá mais dificuldades em compreender o que esperamos dele; terá mais dificuldades em compreender-nos. Mais uma vez, estamos perante um princípio básico de treino. Um bom treinador sabe que deve controlar as consequências dos comportamentos dos cães de modo a agilizar a sua aprendizagem. Consequências distintas para o mesmo comportamento fazem emperrar a aprendizagem, a educação e a comunicação do nosso cão. Isto é, pura e simplesmente, uma questão de treino. Continua a não haver razões para criar uma realidade paralela ao treino, pois o treino continua a compreender esta esfera da aprendizagem e do comportamento canino. Será que haverá alguma razão para aceitarmos a divisão feita inicialmente? Continuemos na nossa demanda.

Ed Frawley continua: «Durante praticamente toda a minha vida de adulto eu treinei cães de protecção e cães de serviço policial. Comecei a estudar trabalho de protecção em 1974. Os meus cães aprenderam que a única altura em que lhes era permitido ser agressivos era quando eu lhes dizia que tal era OK ou quando eu era atacado. Ao longo do meu treino, isto tornava-se muito claro para o cão». Esta nem necessitaria de comentário. É uma questão de treino, e pronto. Não era por assumir algum tipo de postura física que os cães sabiam quando e como atacar; não era por emanação de alguma energia etérea; não era porque o dono comia primeiro do que os cães; não era porque Ed e seus cães jogavam ao sério e Ed ganhava sempre. Não. A razão pela qual os cães aprendiam tal valiosa lição advinha pura e simplesmente do treino específico desse comportamento, apoiado, claro, no treino anterior de outros comportamentos, que é como quem diz, apoiado na relação de comunicação e interacção que o treino prévio criou e fortaleceu.

«Se estudar comportamento de matilha, ou mesmo comportamento de pastoreio, verá que os problemas relacionados com a matilha são lidados de forma muito subtil ou passiva, mas o desrespeito é lidado de forma muito rápida e agressiva. O mesmo deve acontecer numa relação com um cão.» Esta é uma ideia extremamente desconjuntada. Em primeiro lugar, Ed parece sugerir que lidemos de forma agressiva com um problema de "desrespeito" do nosso cão, o que colide violentamente com alguns dos preceitos que encontramos no resto do conjunto de princípios que fundam o sistema de treino e educação de cães da Leerburg. Em segundo lugar, não se percebe bem a diferença entre "problemas relacionados com matilha" e "desrespeito". O fundamento que legitima a existência de uma estrutura de matilha não se prende com a estipulação de uma hierarquia? Então, um "problema de matilha" não será, justamente, um problema na harmonia da hierarquia criada? Qual é a diferença entre tal "problema" e um problema de "desrespeito"?
Em terceiro lugar, e mais importante de tudo: aquilo a que Ed Frawley denomina "desrespeito", à luz do que escreveu no seu texto, só pode ser interpretado como "incumprimento de uma indicação dada". Ou seja, desrespeito é quando um comando não é seguido, quando uma indicação não é respondida convenientemente. Isto são problemas que surgem durante o treino. Têm a ver com a forma como as consequências estão a ser geridas; tem a ver com a existência de distracções demasiado fortes para que a indicação seja cumprida; etc. Tem tudo a ver com treino, e nada a ver com desrespeito de uma pretensa hierarquia. Se vamos optar por adicionar pressão para que o cão responda (isto é, definir consequências mais aversivas para o mau comportamento) ou se vamos optar por uma estratégia de reforço mais acentuado dos comportamentos desejados, isso é uma escolha que se faz dentro do universo do treino, e tem a ver com a forma como cada um se posiciona dentro desse universo. Mas uma coisa é absolutamente certa: tudo passa por um ajuste no tipo de consequências fornecidas para um determinado comportamento, tudo passa por uma redefinição do ambiente e das variáveis; nada se passa por uma questão de simples imposição de autoridade e respeito ou desrespeito desta. Tal como o próprio Ed Frawley admite, «os cães não fazem coisas para que nós nos sintamos bem; eles fazem as coisas que lhes fazem sentir-se bem». Ora, compete a cada um de nós fazer com que as coisas que fazem os nossos cães sentir-se bem coincidam com as coisas que nos fazem sentir bem também. Compete-nos gerir, criar e canalizar a motivação dos nossos cães. Isto é treinar. Isto é educar. De modo genérico, há duas vias de fazer isto (embora, dentro de cada via, haja toda uma multiplicidade de formas de fazê-lo). Duas, não mais. Uma terceira via, ao meio, é uma invenção e uma ilusão; como tal, necessita de outras invenções ilusórias para se justificar. É invenção e é ilusória toda a história que se conta de uma estrutura de matilha e do papel de líder de matilha que temos de assumir.

Não só é ilusória, como também é perigosa. «Treinadores [e donos] inexperientes precisam lembrar-se de que um cão aprende por repetição. Muitas vezes, são precisas 30 repetições para que um cão aprenda um novo comando. Os treinadores [e donos] são frequentemente culpados de pensar que o seu cão compreende um comando quando, na verdade, eles não repetiram o exercício vezes suficientes para que o cão compreendesse o verdadeiro significado daquilo que esperam do cão. Isto resulta em donos [e treinadores] corrigirem injustamente alguma coisa que o seu cão não compreendeu por completo». 
Toda esta coisa das repetições e da consolidação e generalização de um comportamento tem a ver, única e exclusivamente, com treino. A ideia de que nos devemos tornar "líderes da matilha" só provoca uma ilusão perigosa de que o nosso cão deve comportar-se correctamente por respeito ao seu líder. Quando um cão se "recusa" (chamemos-lhe assim) a sentar durante um passeio, frequentemente ouvimos o diagnóstico: "pois é, está a desrespeitar o dono; ele não o vê como líder da matilha, meu caro". Quando um cachorro de quatro meses mordisca as mãos do dono, claro, "não está a reconhecer o dono como seu líder". E por aí fora. Ora, a ideia de se fundar uma estrutura de matilha e firmar-se o dono como líder dessa matilha é uma forma extremamente apetecível para alimentar a preguiça de passar à frente as trinta repetições e menosprezar o engenho de levar o cão a compreender o que esperamos dele. Quando um cão não responde a um comportamento, ou quando tem um mau comportamento, simplesmente esse comportamento não foi devidamente ensinado e exercitado. Mas claro que é mais fácil dizer-se que o dono não está a ser um verdadeiro líder da matilha. É fácil, mas também é perigoso. Ed Frawley está perfeitamente consciente deste perigo. Daí que chame a atenção para o facto de que um verdadeiro líder não apoiará a comunicação com o seu cão nessa liderança; um verdadeiro líder terá de percorrer os passos todos exigidos pelo treino.
Mas a pergunta que se faz é: se o tal líder da matilha tem de percorrer todos os passos do treino do seu cão, por que razão é que o treino do cão é 25% da educação, apenas? Por que razão se separam as duas coisas? Ou melhor, por que razão se reifica a existência de algo cuja razão de existir continua a não ser clara? Por que razão se dá tanto ênfase à estrutura da matilha e à constituição do dono como líder dessa estrutura, se, dê por onde der, tudo vai desaguar à questão do treino?

A resposta é simples: grande parte das pessoas interpreta o treino de cães como o ensino de um grupo finito de comportamentos. Grupo do qual não fazem parte problemas comportamentais como agressividade. É comum ouvirmos dizer que ensinar a sentar e a responder à chamada são questões de treino, mas resolver a agressividade é uma questão de reabilitação. Numa palavra, existe uma ideia generalizada de que treino é uma parte restrita do comportamento dos cães e da nossa relação com eles. Toda uma outra parte, mais importante, pois claro, já não faria parte da esfera do treino; tudo o resto já faria parte da própria essência da relação do dono com o seu cão. E quis "o destino" que a maior parte das pessoas definisse essa essência numa perspectiva de liderança. Daí que surjam, como cogumelos, os discursos da estrutura da matilha, e afins. Só que, sempre que alguém tenta consolidar um tal discurso, os seus fundamentos vão sempre dar a questões que se relacionam com o treino. SEMPRE. Os dois pólos opostos da metodologia de treino de cães têm várias coisas a separá-los, mas ambos parecem conscientes de que educar um cão é treiná-lo, e treinar um cão é educá-lo. Não há energias, estruturas de matilha, posturas mágicas, encantamentos. O que há é comunicação e ensino. Mútuo. O meio-termo do treino canino também sabe desta verdade, mas, para justificar a sua existência, acaba por criar um dogma apelativo à comunidade de donos de cães. O dogma de que treinar cães é algo completamente restrito e limitado, quando comparado com o resto que se passa numa relação entre cão e seu dono.
O curioso é que, apesar de este dogma ser extremamente frágil nos seus fundamentos (como espero que tenha ficado explícito ao longo deste texto), ele continua a imperar e a ganhar adeptos. Fica sempre bem ficarmos numa posição moderada. Faz-nos parecer menos dogmáticos. Mesmo que o sejamos mais do que todos os outros...



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