quarta-feira, 31 de julho de 2013

Centrão, primeira parte


"Um dos grandes problemas dos treinadores de cães é que, normalmente, são muito incompletos. Ora usam apenas castigos e esquecem-se das recompensas; ora usam apenas recompensas e esquecem-se dos castigos. O segredo está em dosear ambas as coisas e encontrar o ponto de equilíbrio. O segredo é dominar ambos os mundos para encontrar o difícil balanceamento entre eles."

Ora, uma vez mais, o moralismo! Discursos como este colhem e captam audiência justamente por apelarem ao moralismo que habita em todos nós e que nos diz, por defeito, que "no meio é que está a virtude". Uma pessoa pode não saber absolutamente nada sobre um determinado assunto, mas a sua inclinação natural é para se posicionar no meio, numa posição intermédia: "Pelo sim, pelo não, fico-me pelo meio... exponho-me menos e ainda dou ares de prudência e abertura de espírito."  É parte constitutiva da nossa natureza colocarmo-nos numa posição de meio termo. A maior parte das pessoas que não se envolve nem estuda muito acerca de ideologia política tem sempre uma posição moderada; pode ser mais de esquerda ou de direita, mas apressa-se sempre a dizer que não gosta nada de extremismos. Parte da nossa forma de nos mostrarmos seres compreensivos e eclécticos passa por aparentar uma posição de abertura para aceitar argumentos das duas partes, e peneirar o melhor de cada uma para formar uma pretensa super-posição constituída apenas pelo melhor de dois mundos.
A estratégia do meio-termo começa por estipular uma realidade maniqueísta, uma realidade formada por dois pólos opostos, e dois pólos apenas. O segundo passo consiste em evidenciar os pontos fortes e fracos de cada uma das partes. E o terceiro passo consiste, finalmente, em fundar uma terceira via, ao centro, que reúna o que de melhor há nas duas partes opostas e que descarte o pior.
Os problemas desta estratégia são vários: em primeiro lugar, raras são as realidades constituídas apenas por dois pólos; cada um desses pretensos pólos é constituído por diferenças internas que fragmentam a realidade em muito mais do que duas simples realidades opostas; em segundo lugar, os pontos fortes de duas posições contrárias raramente são compatíveis, pelo que é apenas estratégia discursiva e ilusória dizer-se que existe uma terceira via que reúne o melhor de dois mundos; em terceiro lugar, uma posição centralista raramente acolhe o melhor das posições polares; ao contrário, de tanto peneirar, aquilo que é acolhido pelo centrão é, invariavelmente, o que sobra dos pólos. Uma verdadeira via alternativa, uma verdadeira terceira via nunca opta pelo meio termo; ao invés de se agarrar ao que já há e seleccionar o que lhe convém, uma verdadeira nova via inaugura novas possibilidades. Em quarto e último lugar, uma posição centralista pode ser tão ou mais ideológica e dogmática quanto as posições polarizadas. O centrão é isso mesmo: uma ideologia do meio-termo, cujo fundamento principal é o de fazer-se passar por eclético e moderado quando, na verdade, defende as suas posições de forma tão dogmática quanto as posições extremistas.
Por todas estas razões desconfio sempre quando alguém forma um discurso baseado numa retórica do meio-termo. E o mundo do treino de cães não escapa a esta lei.

Para que o estimado leitor compreenda em que consiste a posição (retórica) do meio-termo, leia isto. Não vai encontrar melhor representante do que este. Tudo o resto ou é imitação barata ou é de qualidade duvidosa. Esta fonte que aqui lhe forneço tem a seriedade de basear as suas afirmações em largos anos de experiência, tem a honestidade de reconhecer erros passados e aprender novas coisas, mesmo depois de mais de quarenta anos a fazer esses erros, e possui a proeza (difícil de encontrar) de tentar formar um sistema fundamentado de educar um cão.
Posto isto, e uma vez que este texto representa o que de "melhor" há na ideologia do meio-termo, o Abacaxi vai dedicar este e os próximos "posts" a um trabalho crítico do conjunto de ideias apresentadas bem como das consequências e dos preceitos implícitos num tal conjunto. Façamo-lo por partes.

  • Introdução: o apelo à experiência

Comecemos pelo curto texto introdutório, no qual Ed Frawley fala da sua filosofia (leia-se ideologia) de treino e educação de cães. A ideia fundamental desta introdução, bem como o seu maior problema consiste no relevo exacerbado da experiência. A dada altura é dito que «um bom treino de cães reside na combinação de senso comum com uma base sólida de experiência e uma clara compreensão da forma como os cães pensam e interagem (estrutura de matilha).»
Ora, para se ter uma vasta experiência num ramo qualquer é necessário, justamente, acumulação de anos que formem essa experiência. Isso implica que, a dada altura no processo, essa experiência não exista ainda; e o indivíduo que mais tarde virá a ser um profissional experiente, ainda não o é. Ora, como um dos requisitos de um bom treino, segundo Ed Frawley, é ter larga e sólida experiência, isso significa que, durante o tempo em que essa experiência ainda não havia sido constituída, e o indivíduo era ainda inexperiente, o treino por si realizado não poderia ser bom. Logo, um indivíduo que seja "bom treinador", segundo Frawley, é um indivíduo experiente; mas, por definição, toda a sua experiência se baseia em anos de mau treino, que equivalem aos anos em que ainda não se detinha a tal base sólida de experiência. A definição de Frawley de "bom treino" é, em si mesma, absurda, pois baseia-se em algo que se contradiz a si mesmo.
E depois vem o famigerado "senso comum". É verdade que, no inglês americano, "common sense" não é bem "senso comum", mas uma mistura de "senso comum" com "bom senso". Ainda assim, a ideia é extremamente frágil. O senso comum, misturado com o bom senso, é a causa da esmagadora maioria dos problemas que existem no que toca à educação de cães. Aliás, que coisa é essa de senso comum e de bom senso? Desde logo, é algo extremamente variável de cultura para cultura; depois, quando falamos de senso comum falamos de que tipo de comunidade? entre donos experientes e preocupados, certos mitos já se desvaneceram, mas os mesmos continuam a proliferar no senso comum de outros grupos com outros interesses... Basicamente, o apelo ao senso comum e ao bom senso é uma bela desculpa para se evitar um estudo pela via da ciência, e para se validar um tipo de conhecimento baseado nas experiências próprias. O problema é que, como se sabe, as experiências variam de caso para caso e não têm nem podem ter qualquer valor de universalidade ou generalidade. 
No caso específico deste texto de Ed Frawley, o apelo ao senso comum é apenas uma legitimação do valor que é conferido à experiência. O grande argumento inicial de Ed Frawley é, pois claro, a sua vasta experiência. Mas note-se no seguinte:  a experiência de Ed Frawley no ramo é, segundo o próprio, superior a 50 anos de trabalho directo com cães, e mais de 40 anos de trabalho profissional. No entanto, há cerca de 12 anos atrás, o próprio Ed Frawley fez uma grande viragem nos princípios que regiam o seu treino, e hoje admite que uma parte significativa do seu trabalho anterior ao início do presente século está ultrapassado e, usando palavras suas, não passava de uma grande porcaria ("it's rubbish!"). Não está em causa a viragem e a renúncia; ela não deixa de ser digna de realce: é preciso uma dose considerável de honestidade e despojamento de si próprio para admitir 30 anos de erros. O que está em causa é que, durante mais de trinta anos, Ed Frawley concebeu práticas que hoje reprova; o que é que isso diz acerca do argumento da experiência? Simplesmente, a experiência tem um papel muito relativo em tudo isto. Não foi por fruto da experiência que Ed Frawley terá mudado de opiniões; terá sido pelo confronto com outras perspectivas, pelo advento e sucesso comprovado de vias alternativas que fizeram Ed Frawley rever os seus princípios, e rejeitar alguns deles. A experiência nunca pode valer como argumento que comprove a legitimidade de uma determinada ideia. Por cada indivíduo com 30 ou 40 anos de experiência que defenda uma determinada ideia, existem quatro ou cinco com experiência igual ou superior que defendem uma ideia contrária. A experiência vale muito pouco, a partir do momento em que vários profissionais com o mesmo nível de experiência chegam a conclusões opostas. E valerá ainda menos quando se trata de conceitos de teor científico. Eu posso um dia chegar a ter 50 anos de prática diária de lavar louça manualmente; mas isso não me vai dar créditos alguns se eu quiser construir um discurso acerca do modo de acção do ácido linear alquil benzeno.. 
Conceitos como os de dominância têm um âmbito bem definido dentro da área da Etologia. Para se falar dele é preciso, pelo menos, ouvir o que está disponível no corpo discursivo da ciência respectiva. Não faz sentido basear todo um sistema de treino e educação de cães num conceito cujo tratamento científico não só se ignora como se coloca propositada e conscientemente de lado. A experiência é manifestamente insuficiente e, sobretudo, nunca pode legitimar nenhum discurso com pretensões de validade universal e sistemática.

(continua...)

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Coerência?

O que pensar de um sistema de treino e educação de cães que, de um lado, aconselha vivamente o uso combinado de coleira de bicos (prong collar) e de "coleira para cães dominantes" (dominant dog collar), mas, por outro lado, afirma convictamente que uma coleira de choques eléctricos é «100 vezes mais humana e mais eficiente do que estranguladoras ou coleiras de bicos»? 

O que pensar de um sistema de treino e educação de cães que baseia toda o seu programa numa "estrutura de matilha" e numa afirmação do dono do cão como líder dessa estrutura, mas que, ao mesmo tempo, não consegue providenciar nenhuma forma de treino e educação que escape ao uso de utensílios mediadores? Não seria de esperar que a afirmação de um dono como líder alfa da matilha lá de casa dispensasse qualquer recurso a instrumentos de consolidação do poder? Qual o interesse em afirmar uma pretensa posição de liderança, se para isso é necessário um ininterrupto controlo da acção do cão, na maior parte das vezes se tratando de um controlo mediado por instrumentos técnicos?

O que pensar de um sistema de treino e educação de cães que faz das seguintes frases um lema promocional de um seu produto: «Esta coleira não deverá ser usada para infligir uma correcção dolorosa. Ela deve ser usada para retirar o ar de um cão agressivo e dominante»? Qual a distinção que se pode fazer entre "doloroso" e "retirar o ar de um cão"? A mim, de momento, escapa-me tal distinção, mas, de facto, não tenho cinquenta anos de experiência de uso de tais instrumentos...

O que pensar de um sistema de treino e educação de cães que, para dissuadir os donos de cães de realizarem certas práticas, faz uso recorrente do argumento "um lobo alfa nunca faria isso", mas, ao mesmo tempo, aconselha que 99% da relação com o respectivo cão, nas primeiras semanas ou meses deste lá em casa, seja feita com uma trela posta ou com o cão enfiado numa caixa-transportadora (crate)? Qual é o lobo, alfa ou omega, que passeia os seus filhotes ou inferiores membros da alcateia com uma sofisticada e vistosa trela? 

O que pensar de um sistema de treino e educação de cães que desaconselha, em termos absolutos, qualquer interacção entre os nossos cães e os outros cães na rua? Será possível imaginar forma mais eficaz de tornar o nosso cão num animal extremamente insociável, e, como tal, extremamente difícil de ser passeado num qualquer ambiente urbano?

O que pensar de um sistema de treino e educação de cães que, ao mesmo tempo, realça as virtudes de uma socialização do nosso cão com pessoas, mas desaconselha vivamente que algum estranho faça festas ao nosso cão? Que conceito será esse de socialização que apenas implica a convivência próxima com elementos já conhecidos?

O que pensar de um sistema de treino e educação de cães que não se cansa de alertar para formas de prevenir mordidas de cães e, ao mesmo tempo, aconselha a que o dono (e estou a citar) «se envolva fisicamente com cães de rua» que não se afastem do nosso cão, nos nossos passeios?

O que pensar de um sistema de treino e educação de cães que aconselha a sua audiência a transportar gás pimenta para usá-lo em cães de rua que se aproximem de nós e do nosso cão quando andamos na rua?


Serão precisos mais cinquenta anos de experiência para que esta gente se aperceba de tamanhas incoerências e absurdos?

sábado, 27 de julho de 2013

Silêncio, por favor

"Desculpe, mas..."
BUZZ
"...eu gost..."
BUZZ
"...ava de pedir..."
"BUZZ"
"que me ti..."
"BUZZ"
"...rasse isto..."
BUZZ
"...do meu..."
BUZZ
"... pesco..."
BUZZ
"...ço, porque..."
BUZZ
"...é isto mes..."
BUZZ
"...mo que me..."
BUZZ
"...está a dei..."
BUZZ
"...xar nervo..."
BUZZ
"...so e a fazer-..."
BUZZ
"...-me falar..."
BUZZ
"...sem parar..."
BUZZ
"...PORRA."
BUZZ

Um cão tem várias formas de comunicar. Ladrar é apenas uma delas; uma entre muitas. Mas todas as restantes implicam uma proximidade física e um grau suficiente de visibilidade. Quando o "receptor" das mensagens não se encontra no horizonte, a única forma de um cão se expressar é vocalizando. Se um cão ladra em demasia quando está sozinho em casa, o problema não está nos latidos, mas no tédio, na solidão, no aborrecimento que advém de não ter nada que fazer nem ninguém com quem estar. A solução passa por enriquecer o ambiente do cão nos tempos de solidão, e estimulá-lo ao máximo no resto do dia, para que os períodos de solidão sejam mais dedicados ao descanso. Se um cão ladra na presença do carteiro, o mal não está no ladrar, mas no incómodo que essa presença causa no cão. A solução passará por uma dessensibilização ao estímulo em causa, e a prevenção estaria numa rica e continua socialização com elementos estranhos. Seria de esperar que profissionais com mais de quarenta anos de prática chegassem a este tipo de conclusões de forma instantânea. Mas não. Por razões misteriosas, ainda há quem prefira concentrar-se no ladrar em si mesmo; ainda há quem se concentre em formas de terminar com os latidos, sem se preocupar no que lhes está subjacente. Invariavelmente, quando isto acontece, a recomendação recai no uso de um colar de choques ajustado para ser accionado ao som dos latidos do cão. O cão ladra, recebe um choque. O cão ladra, recebe outro choque. E por aí fora. «A beleza do sistema é que a estimulação da coleira [de choques] pode ser ajustada para um valor em que o choque não aleija, sendo apenas ligeiramente desconfortável», ouvimos dizer de experimentados e reconhecidos profissionais. A beleza? Qual beleza, meus caros? Que beleza há em relegar a educação dos nossos cães para instrumentos que até nem aleijam muito, e só provocam um ligeiro desconforto? Uma coisa é usar instrumentos que nos ajudem a aprofundar a nossa comunicação com os nossos cães; outra coisa é usá-los para não ter de educá-los de outro modo. 
Em primeiro lugar, a mim não importa se a coleira dá choques muito intensos ou só ligeiramente intensos; por mim até podiam fazer cócegas: é uma desculpa boçal para treinar o cão desde o sofá. 
Em segundo lugar, não me venham com tangas, ok? Se um cão deixa de ladrar devido aos castigos induzidos pela coleira, creio que não é preciso ser muito especulativo para se perceber que o incómodo causado está longe de ser apenas "ligeiramente desconfortável". Quando um cão ladra, sobretudo por recreação quando está sozinho, quando está ansioso pela separação dos seus donos, ou quando está na presença de figuras como carteiros ou ardinas que pairam no portão de casa, esse ladrar é já manifestação de um estado intenso de nervos, ansiedade, desconforto. Para que um cão deixe de manifestar esse desconforto e essa ansiedade pela forma que lhe é mais natural, imaginemos todos nós que a coleira de choques não está apenas a ministrar uma vibraçãozinha.
Em terceiro lugar: castigar e cessar os latidos não elimina as razões pelas quais o cão está a ladrar. Bem pelo contrário, só se está a aumentar a intensidade da ansiedade e do desconforto em causa. Quando alguém coloca um colar "anti-latido" no pescoço do seu cão, uma de duas coisas está a acontecer: ou não consegue entender absolutamente nada da constituição do seu cão, ou tem as suas prioridades tremendamente pervertidas, pois prefere apagar o desconforto (seu e dos vizinhos) que existe em ouvir o cão ladrar, em vez de se preocupar em cuidar das razões que levam o seu cão a ladrar tão intensamente. No caso de donos inexperientes, a primeira possibilidade é, vá, admissível. No caso de experimentados e reputados profissionais, as duas são igualmente deploráveis. 

Para compreender melhor estes três pontos, imagine o caro leitor que está num desses programas para deixar de fumar baseado na administração de choques eléctricos. 
Se recorreu a este método, acredito que o seu vício é consideravelmente acentuado. De outro modo, procuraria outro método, não? Estou certo de que preferiria deixar de fumar usando métodos não só mais saudáveis e menos extremos, mas, sobretudo, métodos que tivessem mais a ver com a sua própria vontade e não com um tipo de condicionamento externo e maquinal. Portanto, ponto um, usar os choques como forma de educar um hábito é um recurso que passa por cima de uma educação comunicativa e voluntária. Em fumadores e em latidores. 
Muito bem, se tem um vício vincado, então teremos de admitir que não é com cócegas nem com vibrações de telemóvel que a coisa vai lá. Esperneie por onde quiser, argumente o que lhe apetecer: os choques têm de ser aversivos o suficiente para que o leitor perca a vontade de fumar. Não há volta a dar-lhe. Portanto, ponto dois: os choques, para funcionarem, têm de ser intensos o suficiente para quebrar um hábito que, de si, é bastante forte e auto-reforçante. Para fumadores e para latidores.
Agora imagine que fuma por razões de ansiedade ou nervosismo; fuma para aliviar esses estados internos. Ou então, fuma como forma de colmatar momentos de solidão (isto é, para preencher as alturas em que se encontra em público, mas sem companhia). Já se sabe que o comportamento humano é extremamente complexo, e ninguém fuma apenas por uma razão tão clara e linear; mas pronto, façamos este exercício para manter a analogia. Ora, se deixar de fumar por causa da estimulação aversiva que os choques lhe provocam, isso não vai apagar os motivos pelos quais fumava: uma sessão contínua de choques não vai deixá-lo menos ansioso, menos nervoso, nem vai colmatar a sua solidão. Portanto, ponto três, usar choques como forma de parar um hábito não apaga as razões que estão por detrás desse hábito. Em fumadores e em latidores.
E, por fim, imagine que, de todas as vezes que levar choques eléctricos, o técnico que o auxilia está à sua frente. Mas quando não está a levar choques, esse técnico sai de cena. Ora, depois de várias sessões, a presença desse técnico (que apenas está presente na altura dos choques) torna-se antecipador das sensações que os choques lhe provocam. Se acha que não, pense lá bem: o resultado de uma terapia de choques é que o fumador, de todas as vezes que voltar a pegar num cigarro, tem uma náusea extremamente desagradável por causa da associação que lhe foi causada entre o acto de pegar num cigarro e o choque sofrido. Ora, se o choque está associado, não apenas ao acto de pegar num cigarro, mas também à presença daquele técnico em específico, a sensação desagradável também se estende a essa presença.
Agora imagine que não é um humano, com toda a sua capacidade de abstracção e de racionalização das questões; imagine que é uma verdadeira máquina de estabelecer associações: imagine que é um cão. Imagine que costuma ladrar sempre que vê um carteiro e, agora com uma coleira anti-latido, de cada vez que um carteiro está diante de si, leva um choque, porque ladrou. Ora, imagine lá que efeitos este tratamento de choque vai fazer em relação a impressão que vai ter do carteiro. Agora imagine que os cães ladram por mais razões e levam choques em todas essas ocasiões: presença de carteiros, de lixeiros, presença de outros cães... Será de admirar que grande parte dos cães que usam ou usaram coleiras anti-latidos são cães muito pouco sociáveis?

Voltemos, enfim, à epígrafe inicial. Ladrar é uma forma de expressão dos cães. Usar uma forma de castigar cada latido do cão não faz sentido nenhum. Deixa o cão sem qualquer tipo de escolha. Perante situações de perigo ou desconforto, um cão tem sempre três formas de reagir. Fugir, lutar e desistir (suprimir qualquer tipo de actividade; entrar num estado de zombie). Perante um choque de uma coleira, um cão não pode fugir, nem pode lutar. Entra num estado de learned helplessness, num estado de zombie comportamental. Tal cão não aprendeu a deixar de ladrar: aprendeu a desistir de se expressar. O resultado é o mesmo? As prioridades de quem achar que o resultado é o mesmo são, quanto a mim, muito claras: o que importa é terminar os latidos, não importa como, nem importam as consequências.
Não quero dizer que, por ser natural, os latidos devam ser ignorados. Mas se existem outras formas de lidar com eles, por que razão recorrermos a um dispositivo tão frio (porque usa um tipo de comunicação perversa e distante), doloroso (porque inflige dor, digam o que disserem), ineficaz (porque não ataca as causas do problema), castrador (porque remete o cão para uma situação de não-comunicabilidade) e perigoso (porque provoca danos colaterais muito graves no comportamento futuro)? Porquê?



quinta-feira, 25 de julho de 2013

Não fui eu!

"O meu cão não me deixa dormir. Ele ladra a noite inteira."
"Hm, e qual a sua acção quando isso acontece?"
"Tento castigá-lo, mas nada, ele continua."
"Cuidado com a forma como castiga o seu cão."
"Como assim?"
"Convém que o faça de forma 'despersonalizada'."
"Ãh?! o que é isso?"
"É um tipo de castigo que é aplicado mas de forma a que o cão não perceba que foi o dono que o aplicou"
"Ah, estou a ver. Mas por que razão se faz isso?"
"Para que o cão não aprenda a associar as más consequências ao seu dono."
"Mas não deveria associar? Não deveria ele perceber que sou eu mesmo que o estou a castigar?
"Pois, mas se ele fizer essa associação, a sua ligação com o seu cão pode ficar deteriorada"
"Mas não é esse o objectivo do castigo: fazer com o cão perceba que eu não aprovo tal comportamento? Não deveria eu estar a assumir o papel de líder?"
"eerr, pois, isso é verdade. Mas é melhor que o nosso cão não nos associe aos castigos. Isso pode arruinar a nossa relação com ele..."

Uma das mais recentes modas no treino de cães incide sobre aquilo a que se vem chamando de "punição despersonalizada" (em rigor, isso já se faz há muito, mas a voga do termo é recente, e, com ela, toda uma ideologia adjacente...). O seu princípio é bastante simples: o dono castiga o seu cão mas fá-lo de forma a que o cão não saiba que é o dono que o está a castigar. Tudo em nome da manutenção do vínculo que une dono e cão. Vínculo? Mas qual vínculo? Que vínculo é esse que poderá ser ameaçado pelo facto de corrigirmos o nosso cão frontalmente? Ou deverei perguntar, antes, que castigo é esse que ameaça deitar abaixo o vínculo entre o dono e o seu cão? Das duas, uma: ou o vínculo é extremamente frágil, ou as correcções são demasiado vigorosas. Ou, se calhar, as duas ao mesmo tempo. É que se o vínculo é forte e se a correcção é suave, justa e ponderada, por que raio alguém poderá pensar que o vínculo pode ser desfeito, destruído? 
O mais grave, ainda, reside na forma como toda a lógica pela qual nós educamos os nossos cães é pervertida. Educar um cão é comunicar com ele; a beleza do treino e da educação dos nossos cães é que lhes estamos a ensinar a comunicar connosco, comunicando com eles. Educar um cão é fortalecer o vínculo que nos une. Ora, tudo isto é pervertido quando começamos a congeminar esquemas, montar dispositivos, elaborar engenhocas que castiguem os cães despersonalizadamente, que é o mesmo que dizer, castigar os cães e fingir que não fomos nós. Haverá forma mais perversa, desonesta e cobarde de educar um cão? Se tem dificuldades em conceber o que é um castigo despersonalizado, é só ver os Alexandres Rossis desta vida a enrolar latas com fios fininhos que vão dar a uma tábua que está em cima do balcão da cozinha para que, quando o cão saltar para o balcão e tentar roubar comida, as latas caiam e provoquem um barulho que assuste o cão (esquema bastante estúpido e ineficaz, porque, se o cão tentar uma segunda vez, o barulho já não acontece, e não se cria nenhum padrão de consequências más para o respectivo comportamento); é ver os líderes da matilha desta vida emularem a boca de um cão com os dedos para fingir que, naquele momento, nós próprios somos um cão (um cão esquisito, que tem dentes no fim dos membros e não na boca) e não o humano que lê livros, vê televisão, segura na trela dele mas não usa nenhuma, faz xixi de pé e numa sanita, veste roupas e come com talheres (tudo coisas muito caninas, com certeza); é ver os Rabah Madjer desta vida a dar toques de calcanhar no lombo do cão para "redireccionar" a atenção deste sem que ele perceba que fomos nós que o fizemos; é ver os Muay Thai do treino canino que, para ensinar o cão a não saltar para cima do dono quando este chega a casa, fingem estar muito contentes com o cumprimento dos seus cães, mas, ao mesmo tempo, colocam o joelho de forma a causar um impacto desagradável e, assim, dissuadir o seu cão de repetir a proeza. Repare o estimado leitor no empenho engenhoso de que tanta gente é capaz só para não ter de confrontar o cão. Repare no tempo que muita gente gasta para não gastar tempo a educar os seus cães. 

É neste contexto que surgem as coleiras de choques eléctricos. Para além de poderem castigar o cão à distância, estes dispositivos permitem também providenciar más consequências para os comportamentos errados dos cães sem que essas más consequências sejam associadas ao dono. A mecânica da coisa é mais ou menos esta:
> o cão está a aprender a seguir o dono, com ou sem trela > enquanto segue o seu dono, nada acontece, nem de bom nem de mau (ou até podem acontecer coisas boas, como o dono ir dando biscoitos; para o efeito em causa, tanto faz) > no momento em que o cão se distrai e segue outro caminho, ou simplesmente pára, leva um choque (sobre a retórica do "não é bem um choque, é uma vibraçãozinha de nada", já se falou aqui no abacaxi, portanto, não venham com histórias, por favor) > o cão assusta-se, olha para o dono > este como que diz "não fui eu" > e cão volta a seguir o dono > o processo repete-se algumas vezes até que o cão aprenda a lição. 
E que tal tirar um tempo para ensinar o cão a gostar de seguir o seu dono? E que tal tirar um tempo para construir uma marca verbal de correcção de comportamento (um non-reward mark, de que falaremos a devido tempo)? E que tal ensinar o seu cão a comunicar consigo e aprender a comunicar com ele?
Qual é o objectivo da educação do seu cão: dar espectáculo no parque e ter um cão que o segue mesmo sem trela, ou aprofundar a relação que tem com o seu cão? Quando alguém coloca uma coleira de choques no pescoço do seu cão, não preciso de ouvir absolutamente mais nada para saber quais são as suas prioridades. 

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Remote Control

Um dos usos de uma coleira de choques eléctricos relaciona-se com o controlo das acções do nosso cão quando este se encontra sem trela. Nomeadamente, no treino da chamada. Um dos grandes problemas quando treinamos os nossos cães a responder à chamada tem a ver com as distracções que, sobretudo na adolescência, tendem a sobrepor-se a qualquer "valor" que esteja associado à chamada do dono. E, ao contrário do que acontece quando o cão tem um comportamento desajustado quando está à trela ou, simplesmente, quando está em casa ou num outro ambiente controlado e limitado, aqui, em campo aberto, é impossível corrigir o comportamento errado. A não ser que usemos uma coleira de controlo remoto. O princípio é básico: o cão, por qualquer razão, não responde à chamada; o dono ministra um choque à distância; o comportamento errado é corrigido e, como tal, tornado menos provável de ocorrer no futuro. 

Aparentemente, a coisa não tem falhas. Independentemente de o choque causar mais ou menos desconforto no cão, podemos sempre argumentar que tudo isso é um mal menor comparado com a eventualidade de o nosso cão ser atropelado ou perder-se. Mas este é um daqueles casos em que tudo começa por uma questão extremamente mal colocada. Na verdade, existe uma enorme petição de princípio a ocorrer aqui. Vejamo-la.

Perguntemos: qual a razão pela qual, para começar, andamos com os nossos cães soltos, sem trela, em campo aberto? Para exercitar e estimular os nossos cães; para eventualmente socializá-los com outros cães; para praticar algumas actividades impossíveis de serem realizadas com trela (frisbee, fetch, etc.).
Ora, todas estas actividades devem ser um fim em si mesmas. Como tal, o cão deve gostar delas; de outra forma, qual o sentido de praticá-las? (nota: os gostos dos cães não são imutáveis e irredutíveis; eles também são ensináveis, apreensíveis, trabalháveis). Se estivermos a promover um jogo de fetch (recobro, busca), partimos do princípio de que houve um período antecedente de aprendizagem do jogo e partimos, também, do princípio de que o nosso cão gosta do jogo. Como tal, ele deverá estar concentrado no jogo de tal forma que todas as distracções exteriores não o demoverão da actividade. Se ele se distrair a ponto de abandonar o jogo, isso significa que o ambiente está longe de ser o ideal e significa que não é seguro praticar tal actividade em tal local. Se não é seguro, não se realiza. Ponto. Procura-se outro local; treina-se mais o cão; não se solta o cão. Estas são as possibilidades. As únicas. A isto chama-se gestão das variáveis ou do ambiente. 
Colocar uma coleira de choques eléctricos no pescoço de um cão é uma acção que parte sempre do princípio de que andar com o nosso cão sem trela é uma inevitabilidade. Como é óbvio, não o é. Em vez de expor o nosso cão a uma liberdade com a qual ele ainda não sabe lidar e que o pode colocar em sarilhos, por que não seleccionar melhor as actividades a fazer com os nossos cães e os locais onde realizá-las? Em vez de libertar o cão e, com o pretexto de controlá-lo melhor, acoplar-lhe um instrumento de controlo remoto, por que não começar por ambientes mais seguros e ir, pouco a pouco, reforçando o poder da nossa chamada verbal?
Podemos, eventualmente, nunca chegar ao ponto de conseguir ter um bom controlo verbal do nosso cão em ambientes com grandes distracções, mas quem disse que isso é o objectivo? O objectivo principal de se treinar a chamada do nosso cão não pode ser outro que não o de fortalecer o vínculo que nos une. Se, eventualmente, nunca conseguirmos ter um cão confiável em "ambientes competitivos", paciência. Não faz sentido colocar uma coleira de choques no nosso cão só para que possamos pavoneá-lo, sem trela, pelo parque. É preguiça pura; é egocentrismo puro. Se está a considerar usar esta ferramenta para controlar os movimentos do seu cão, reavalie as suas prioridades: passa-se algo de tremendamente perverso na forma como está a constituir a relação com o seu cão. 

(O abacaxi coloca-lhe um exercício, em jeito de trabalho de casa e revisão da matéria dada. À luz do que o caro leitor já sabe acerca de condicionamento clássico e da forma como os cães criam associações directas através desse tipo de condicionamento, pense lá que tipo de lições e que tipo de consequências terão os choques eléctricos que o seu cão sofrerá quando junto de outros cães?)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Buzz

«Desculpe, o que é que o seu cão traz ao pescoço?»
«Ah, é uma coleira de choques.»
«Choques? Tipo quê?... eléctricos?»
«Sim.»
«Isso não soa nada bem.»
«Ah, não, eu só uso no grau mínimo de intensidade.»
«Grau mínimo?»
«Sim, existem vários graus de intensidade, e eu uso no grau mínimo.»
«Então apanha um choque pequeno, é?»
«Nem é bem um choque, é uma pequena vibração. Como a vibração de um telemóvel, sabe?»
«Então, por que não se chama colar de vibrações?»
«Porque se for nos graus mais elevados, aquilo dá um choque, de facto.»
«Mas o senhor só usa no grau mínimo.»
«Sim.»
«Mas há quem use nos graus mais elevados?»
«Err, é possível, mas eu não, eu não.»


Uma grande fábula contemporânea é contada acerca dos colares de choques eléctricos, segundo a qual estes colares apenas realizam uma pequena vibração no pescoço do cão. Se fosse apenas por uma pequena vibração, esse colar nunca realizaria qualquer acção de castigo. Creio que por esta altura já lhe foram apresentadas, aqui pelo Abacaxi, razões suficientes para compreender por que motivos isto não passa de um logro retórico. 
Um choque ministrado para castigar o comportamento errado é uma forma de castigo positivo. Não importa a intensidade: a sua função é fazer associar o comportamento errado a algo desagradável de modo a reduzir as probabilidades de que o cão repita esse mau comportamento. Ora, já se viu que um castigo positivo apenas é eficaz se for realmente aversivo. Se for algo pouco ou nada desagradável para o cão, o castigo positivo não se sobrepõe aos estímulos que levam o cão a ter o comportamento "errado". Por exemplo, o cão encontra-se solto, num parque, e sai do perímetro desejável; o dono ministra um choque por controlo remoto; se este choque for pouco ou nada incómodo, o ímpeto que levou o cão a sair daquele perímetro continua a ser primário e superior em relação a qualquer estímulo contrário. Ou seja, se o cão, em primeiro lugar, saiu dali da zona, terá havido algum estímulo (um cheiro, um cão ao longe, um lago com patos...) que o atraiu; para que o choque ministrado seja correcção "suficiente" para que o cão perca o interesse em sair do perímetro, ele terá de ter uma intensidade maior do que aquela apresentada pelo estímulo referido. 
Numa palavra, pelas leis mais básicas da aprendizagem, o cão apenas vai deixar de realizar um determinado comportamento se as consequências para esse comportamento forem "mais más do que boas"; para isso, quando um dono usa uma coleira de choques, o choque-correctivo terá de se superiorizar ao apelo que o cão sente em fazer um determinado comportamento (aos olhos do dono, indesejável). Ou seja, terá de ser aversivo o suficiente. Não basta uma vibração para dissuadi-lo. Nos casos em que basta uma vibração, então por que raio se recorre à coleira? Se uma vibração é suficiente, isso significa que o grau de distracção do cão não é assim tão grande, nem sequer o estímulo que o está a atrair não é assim tão intenso; logo, bastaria uma simples indicação verbal da parte do dono. Em vez de colocar uma coleira de vibrações no pescoço do nosso cão, por que não investir em reforçar o poder da chamada verbal?

O que me faz mais confusão continua a ser o seguinte: como é que é possível que as pessoas acreditem nesta retórica tão frágil? Como é que é possível que as pessoas caiam no encanto do discurso do "é só uma vibração"? Colocar um colar de choques no pescoço do nosso cão nunca pode ser uma decisão feita à pressa; como tal, eu esperaria que as pessoas pusessem o seu sentido crítico a funcionar antes de fazê-lo; e, se o fizessem, certamente chegariam à conclusão de que uma vibração apenas nunca será suficiente para fazer aquilo que a nossa voz não consegue. Mas não: as pessoas continuam a não fazer este raciocínio. Por que será?
A justificação para que tanta gente caia neste engodo está, mais uma vez, na perspectiva moralista de conceber um cão. Só isso pode justificar tamanha falta de sentido crítico. Se um colar de choques corrigisse um cão apenas por despoletar uma ligeira vibração, o mundo seria tal que o cão tivesse uma percepção moral das suas acções. De tal forma que a ligeira vibração funcionasse como um "ei, o teu comportamento está errado". Era como se o nosso cão pensasse: "ups, cometi um erro, peço desculpa, peço desculpa". Mas, se assim fosse, não bastaria a voz do dono para dar a entender uma tal mensagem?

Existem tantas coisas erradas nesse processamento de informação que me é custoso sintetizá-las. Aqui vai um esforço nesse sentido:

  1. Não é por um reconhecimento moral do erro que os nossos cães aprendem: é, antes, pelas consequências que os comportamentos têm;
  2. Se as consequências das correcções são menos intensas do que as consequências inerentes ao comportamento, o cão não vai deixar de realizar esse comportamento;
  3. Ou seja, para que um colar de choques faça realmente efeito, ele vai ter de fazer mais qualquer coisa do que ministrar umas simples vibrações;
  4. Qual é o apelo em fazer do nosso cão um carro telecomandado? Se queriam um Niko Turbo Panther, por que razão escolheram um Labrador preto? 
  5. Qual é o apelo em estabelecer uma relação com o nosso cão baseada numa comunicação binária, informática e consumada em vibrações? Se queriam um Galaxy S3, por que razão escolheram um Boxer tigrado?
Mas, então, o que fazer em vez de ministrar choques? A primeira resposta que tenho para dar é: estabeleçam uma relação com o vosso cão. E a melhor forma de estabelecer uma relação com um cão é apostar na educação. Na do cão, mas também na do dono. Só depois de compreendermos melhor o que é um cão é que podemos educá-lo. E, sim, a melhor forma de comunicar com o nosso cão é ensinar-lhe as bases dessa comunicação. E parece-me extremamente boçal basear a nossa comunicação em vibrações e choques à distância. Implique-se na educação do seu cão. Se tiver de corrigi-lo, faça-o honesta e frontalmente. Não há conceito mais detestável do que "a correcção despersonalizada" (sobre isto, dedicarei um curto futuro "post").
Mas, então, o que fazer, em concreto? É-me um pouco constrangedor ter de responder a esta pergunta, porque me parece óbvia a resposta. No entanto, o próprio princípio de que parte o presente texto baseia-se na realidade de que existe uma estranha dificuldade em responder a esta pergunta. Razão pela qual o Abacaxi fará o esforço de lha dar: treine o seu cão. Ponto. Em vez de delegar o comportamento do seu cão a um dispositivo electrónico emissor de choques, eduque o seu cão a gostar de fazer aquilo que pretende que ele faça. De que forma? Quais as alternativas aos choques? Para isso, é preciso ver em que situações surge o recurso à coleira de choques. Só consigo antever três situações nas quais alguém use uma coleira de choques: (i) para controlar o cão à distância (isto é, sem trela), nomeadamente para "treinar" a chamada do cão; (ii) providenciar um castigo despersonalizado, de forma a que um determinado comportamento cesse, sem que o cão associe o castigo ao seu dono, não estragando, assim, a relação; (iii) uso específico de uma coleira anti-latido, de forma a "ensinar" o cão a não ladrar.
Os três próximos "posts" irão abordar estes três "casos", em específico. 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Deixa andar, deixa passar


"Ei, grande cão. Adoro Dobermanns. Também tive um, há uns tempos"
"Já morreu, foi?"
"Sim, tivemos de abatê-lo. Teve de ser..."
"Teve?"
"ya, tu sabes, aquela cena deles ficarem malucos, com a idade. Ele já tinha 8 anos...".

Depois de melhor espremida a história, percebeu-se melhor o que é que tinha acontecido, na verdade. O cão era sempre deixado a comer sossegado. E nada se passou... até ao dia em que a mãe deste rapaz passava por perto, deixou cair alguma coisa que caiu nas imediações do prato. Baixou-se para apanhar esse objecto, e o cão... isso mesmo, foi-lhe ao lombo.
A senhora, tão habituada aos oito anos sem preocupações, nem se lembrou de que poderia estar a invadir uma esfera proibida. Não foi capaz, sequer, de vislumbrar qualquer aviso que tivesse eventualmente existido. (Aliás, de um membro de uma família que possui um Dobermann durante 8 anos e ainda acredita num dos mitos mais ridicularizados dos últimos anos, não seria de esperar que fosse capaz de ler sinais de aviso e agressividade de um cão, mas isso é outra história).
Simplesmente se baixou para apanhar o que tinha deixado cair. Na cabeça dela, nem sequer ia tocar no prato. E mesmo que fosse, tanto quanto sabia, o seu cão não era agressivo nem "mau para os donos"...
Acontece que o problema que se designa como "protecção de recursos" (Resource guarding) tem muito pouco a ver com a forma como o cão se comporta no resto da sua vida. Mas não é de Resource guarding que se pretende falar hoje (haverá certamente mais oportunidades para fazê-lo). Pretende-se falar de algo muito mais simples mas também muito mais difícil de desconstruir.

O que é que de errado se passou na história? Certamente que uma grande parte das pessoas se concentrará na crença idiota num mito sem pés nem cabeça como esse que "afecta" a raça Dobermann. Mas o estimado leitor, não, o estimado leitor tem um espírito mais crítico e aguçado. Certamente não lhe terá passado ao lado a questão fundamental: à conta de um outro hábito mitificado, um cão morreu, e se em vez de ter sido um adulto, naquela hora tivesse sido uma criança, esta também poderia ter morrido. Qual hábito? A ideia de que "deixar o cão ser cão" implica uma série de coisas, nomeadamente, não importuná-lo na hora da refeição.
Ideia que se alia a uma outra, contígua: a ideia de que treinar um cão é, muitas das vezes, robotizá-lo, incomodá-lo, stressá-lo. Ainda não consigo reagir com naturalidade quando alguém argumenta que o treino de um cão o prejudica, e que devemos deixar em paz "o coitado do bicho". Uma coisa é olharmos com crivo crítico para a forma como muitos "treinadores" abusam da desculpa da educação para passar o limite do admissível. Outra coisa é defender uma atitude de laissez faire na educação dos nossos cães. A maior parte dos ataques violentos que vemos serem noticiados não provém de um ensino específico no sentido de o cão ser agressivo. Provém, antes, de educações passivas, que reflectem o espírito "naturalista" a que me refiro aqui. Esta ideia de que devemos deixar o cão ser cão (e não um robot) tem consequências drásticas. Consequências que estão espelhadas no diálogo epigráfico deste "post". 
A pergunta que eu gostaria de ver respondida é: "mas o que é isso de deixar o cão ser cão?" A todas estas pessoas que se identificarem nessa ideia, eu lhes contra-respondo: então deixem lá os pobres dos canitos fazerem os seus xixis e cocós pela casa; deixem-nos usar a boca sem limites para comunicarem convosco, afinal, tratam-se de cães; deixem-nos trepar para as vossas pernas e braços e copular com eles. Deixem andar, deixem passar. Ah, concordarão que há limites para esse naturalismo todo, não é verdade? Pronto, então passemos ao segundo passo.
Onde é que esses limites devem ser definidos? O que é que é aceitável e o que não é? E qual a justificação para que uma coisa o seja, mas outra não? O meu conselho: parem com os moralismos que vos atrofiam a mente, e pensem que educar um cão é a forma mais profunda e intensa de nos envolvermos com eles; educar um cão é, também, a forma mais justa que temos de integrá-los num mundo que não é bem o deles. 
E educar um cão é dar-lhe a conhecer as regras deste ser estranho com que convivem; mas é também fazer um esforço para conhecer os vários traços que definem a natureza do cão. Tal investimento na compreensão de uma natureza distinta da nossa fornece-nos um sem número de noções de que não dispomos naturalmente, nem usando o nosso tão afamado bom senso. Não, não basta o bom senso; é preciso mesmo estudarmos, lamento. 
Uma dessas noções de que não dispomos sem nos dedicarmos a estudar e compreender a natureza dos nossos amigos refere-se a esse instinto de protecção e guarda de recursos. Compreender esse instinto implica compreender que ele é natural e, contudo, complexo. O facto de ser natural apenas importa para que percebamos que nenhum cão está a licitar algum tipo de guerra de poderes com os donos quando lhes rosnam perante o prato de comida; no entanto, o facto de ser natural não significa que seja desejável. Morder também é um comportamento natural; ladrar também; isso não significa que deixemos de educar os nossos cães a moderarem esses comportamentos. Numa palavra, o facto de ser natural não impede que seja um problema. Neste caso da protecção e guarda de recursos, o mesmo se aplica. Existem formas de preveni-lo. E existem formas de tratá-lo, quando já é um problema existente. Nenhuma delas implica algum tipo de menosprezo da natureza do cão; nenhuma delas implica qualquer tipo de desconforto, confusão ou perturbação do cão. Pelo contrário, implica que o nosso cão passe a adorar de cada vez que nós nos aproximamos do seu prato quando ele está a comer. É mesmo esse o objectivo. 
Mas ainda há quem insista em deixar andar, em nome da tranquilidade do cão. Caro leitor, pergunto-lhe: qual é o cão que lhe parece mais tranquilo, o cão A que, quando está a comer, rosna a todos que se aproximam dele, ou o cão B, que pouco se incomoda com qualquer aproximação que haja? "ah, mas ninguém tem de se aproximar dele quando ele está a comer". Se o caro leitor se encontra a pensar isto, neste momento, eu perdir-lhe-ei desculpas, mas dir-lhe-ei que isso é uma demagogia tremenda. Conseguirá garantir-me que, nos próximos 12-15 anos, todos os dias, duas vezes por dia, vai garantir que ninguém se vai aproximar do seu cão quando ele estiver a comer? É que estamos a falar num evento que vai ocorrer umas 10950 vezes... Não vai haver crianças em casa, não vai haver nenhuma vez em que seja preciso mexer em algo ali perto do prato do cão? Não vai?, o que é que lhe garante? E mesmo que minta para si próprio e diga que sim, que vai conseguir garantir um tal hercúleo controlo das variáveis possíveis, pergunto-lhe se prefere este nível de constrangimentos prolongados a perder uns diazitos e tornar o seu cão num cão mais tranquilo e estável?
Infelizmente, há quem prefira deixar andar... 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Imagine... novamente

Imagine o caro leitor que tem um cão que apresenta um problema com alguma gravidade: sempre que ele está a comer e alguém se aproxime dele e do seu prato, ele rosna. 
Consciente de que este cenário pode desembocar em algo desagradável ou desastroso no futuro, resolve contactar um profissional para tratar do caso.
Agora imagine que esse profissional (imaginário, claro) confirma as suas suspeitas e lhe diz que não é normal nem desejável que um cão rosne ao seu dono. Imagine ainda que este treinador fictício lhe diz que isso é sinal que o seu cão não o respeita enquanto dono. Imagine.
Depois, em ordem a demonstrar o que é um comportamento desejável de um cão e, possivelmente, demonstrar-lhe qual a postura que deve ter perante o seu cão e perante a situação, este treinador imaginário leva-o até aos seus aposentos, e decide mostra-lhe o ritual da hora de almoço dos seus vários cães. Imagine o leitor que o seu treinador escolhe aquele que é, confessadamente, o seu melhor exemplar de comportamento e de respeito ao dono. Imagine que ele encosta a cabeça ao prato enquanto este exemplar modelo canino toma a sua refeição. Agora imagine que este cão rosna ao seu dono, isto é, ao treinador que acabou de, imaginariamente, contratar e seguir. O cão rosna ao seu dono; este, do alto dos seus conhecimentos e competências profissionais, exerce um correctivo toque no focinho do seu modelo exemplar. No entanto, o cão volta a rosnar e a mostrar os dentes. O dono desse cão (o profissional qualificado) volta a corrigir o comportamento, desta vez apenas com uma vocalização e um gesto manual sem toque. O cão vira o focinho, de forma a evitar contacto visual, e... como estamos a falar de um cenário imaginário, a cena termina ali sem se saber quantas vezes mais houve rosnares e correctivos. 

Quais seriam as conclusões que o estimado e crítico leitor faria das credenciais deste profissional?

a. Ficaria admiradíssimo e rendido perante a capacidade deste treinador em corrigir um mau comportamento apenas com um toque no focinho e uma vocalização? E, como tal, pensaria: "uau, é mesmo este sujeito que quero que trate dos meus cães".

b. chegaria à conclusão de que, quando um cão rosna ao seu próprio dono, isso significa que algo de profundamente errado se passa nessa relação (aliás, havia sido o próprio treinador que lhe havia dito isso em relação a si e à sua relação com o seu cão). E, como tal, pensaria que talvez fosse preferível ter uma segunda opinião (i) de alguém que fosse mais coerente entre aquilo que diz acerca dos seus clientes e aquilo que ele próprio faz com os seus cães; (ii) de alguém que, tendo tido ou não o mesmo problema com algum dos seus cães, já o tivesse resolvido há muito, afinal de contas, tratar-se-ia de um profissional; (iii) estipulasse um plano de tratamento que fizesse com que o cão deixasse, pura e simplesmente, de rosnar ou mostrar qualquer tipo de sinais de desconforto, e não, simplesmente, um plano de tratamento que lhe dissesse de que forma é que deveria corrigir o seu cão sempre que ele lhe rosnasse...


Qual seria a opção escolhida pelo estimado leitor, qual seria?

sexta-feira, 12 de julho de 2013

WC - Jogo das consequências

- O meu cão é tão teimoso.
- Ai, sim? Então, porquê?
- Insiste em não fazer xixi na rua. Levamo-lo à rua e ele nada. Aperta, aperta... Depois, mal chegamos a casa, pumba, vai logo fazer um xixi. 
- Deixe-me adivinhar: o caro amigo repreendeu o seu cão sempre que ele fez dentro de casa, certo?
- Sim, como sabe?
- Hm, tenho um dedo que adivinha...

Na verdade, esse dedo-adivinho chama-se lei da aprendizagem. Lei da qual nenhum cão foge, por muito que isso nos custe e por muito que haja pessoas que interpretem essa afinidade à lei como algo que robotiza os nossos cães.

Aquando da abordagem ao condicionamento operante, vimos que nenhum método de treino existente exclui o uso de castigos. Mas ao longo destes últimos "posts", acerca da questão das necessidades, tem-se vindo a desaconselhar qualquer tipo de castigo aplicado aos nossos cães sempre que eles fizerem xixi no sítio errado. Porquê?

Em primeiro lugar, gostaria de recordar algo de muito importante que foi dito nos "posts" relativos às leis de aprendizagem e ao funcionamento do condicionamento operante: é muito importante saber estes princípios para que os possamos "esquecer" quando os aplicamos. Ou seja, é mau sinal quando andamos com as definições para trás e para a frente sempre que vamos aplicar condicionamento operante. É sinal que estamos demasiados preocupados com aquilo que é, ou deveria ser, secundário.

Em segundo lugar, e consequentemente, temos de ver a situação nela mesma e pensar nas repercussões das nossas acções. Conforme espero que fique claro no final deste "post", castigar o nosso cachorrinho quando ele faz xixi fora do sítio equivale a dar um tiro no pé. Vejamos. (o que se segue é vagamente inspirado numa ideia recolhida de The Culture Clash, da Jean Donaldson)

Existem quatro cenários possíveis para o evento em causa. Quatro e só quatro:

                a. o cachorro faz xixi no local correcto e o dono está lá para ver;
                b. o cachorro faz xixi no local correcto e não está ninguém a ver; 
                c. o cachorro faz xixi no local errado e ninguém está lá para ver; 
                d. o cachorro faz xixi no local errado e está lá o dono para ver.

Agora vejamos as consequências possíveis:

                a1. o dono recompensa o acto
                a2. o dono ignora o acto

                b. nada acontece a não ser o alívio da bexiga

                c. nada acontece a não ser o alívio da bexiga

                d1. o dono castiga o acto
                d2. o dono ignora o acto

Como vemos, e como é óbvio, só há alternativas quando o dono está presente; quando o dono está ausente, por muito que custe, não há opções: as consequências são inevitavelmente uma e uma só. O cachorro alivia a bexiga sem feedback de ninguém (nem positivo, nem negativo).
Agora, imaginemos um caso, um exemplo:

O Patusco, numa bela tarde de Terça-feira, estava, como normalmente, a passar a tarde sozinho em casa. Como normalmente, também, começou a ter vontade de fazer xixi. Dessa vez, decidiu experimentar o chão da sala de estar. Nada aconteceu de extraordinariamente relevante, nem positivo nem negativo. Apenas aliviou a bexiga, e nada mais. "Hm, aqui parece ser seguro", será a informação processada pelo Patusco. Nesse mesmo dia, à noite, já com os seus donos em casa, o Patusco volta a fazer um xixi no mesmíssimo sítio da sala de estar: não só ele havia pressentido, pela experiência desse dia, que esse sítio parecia seguro, como ainda havia resíduos do odor do xixi precedente. Porém, dessa vez, os donos estavam lá e, muito naturalmente, repreendem e castigam o acto do Patusco. "Epá, afinal este sítio não é assim tão seguro...".
No dia seguinte, o Patusco decide experimentar, dessa vez, o chão da cozinha. A sucessão de eventos é a mesma: de tarde, as consequências são neutras (em rigor, são moderadamente positivas, já que o alívio da bexiga já é uma consequência positiva); de noite, as consequências são negativas, pois o seu cachorro é castigado (por fazer exactamente a mesma coisa que havia feito de tarde...).
A pergunta a fazer é: o que mudou? Qual foi a alteração que fez com que, do dia para a noite (literalmente!) as consequências do mesmíssimo acto sejam tão diferentes? Creio que não parece haver dúvidas, não acha? Claro, o factor diferencial é, justamente, a presença dos donos. Num evento, não se dá a presença dos donos; no outro, os donos estão presentes.
Os nossos cachorros podem não ter o mesmo tipo de inteligência que a nossa, mas não me parece que demorem muito a chegar às mesmas conclusões. Lembre-se de que um cachorro aprende tudo com base nas consequências para os seus comportamentos. Assim sendo, com base nas diferenças de consequências para um mesmo acto, qualquer cachorro vai aprender a seguinte lição: "ah, ok, já entendi; os meus donos não gostam é que eu faça xixi ao pé deles..."
E essa lição é reforçada logo a seguir quando o cachorro sente vontade de fazer um xixi, com os donos presentes, mas, desta vez, procura um sítio afastado destes. Qual a consequência para um xixi na divisão ao lado? Lá está: consequência neutra (moderadamente positiva). "ah ah! confirma-se, só tenho é de fazer xixi longe dos meus donos, está feito". Claro que dois minutos depois os donos vêem o servicinho e poderão considerar castigar o seu cachorrinho. É claro que, por esta altura, já o estimado leitor saberá que, nesse caso, os donos estarão a castigar o comportamento que o seu cão acabou de ter (seja ele qual for), e não o xixi de há dois minutos atrás.
E agora o caro leitor visualize cada passeio do seu cão. Pode ir passear para a rua da frente, para a rua de trás, para o jardim, para o parque, para a praia. Pode encontrar ou não outros cães; pode ser afagado ou não por outras pessoas. Muita coisa pode acontecer de forma variada de passeio para passeio, mas há uma coisa que se mantém inamovível: a presença de um dos donos, bem junto dele. Agora adivinhe lá por que razão é que o seu cachorro se recusa a fazer xixi na rua. Qual será a razão? É a mesma pela qual ele procura uma divisão da casa sem ninguém para fazer lá o seu xixi. Ele aprendeu que fazer xixi junto dos seus donos tem um tipo de consequências bem piores do que fazer longe deles. Isto é pura e simples aprendizagem. Não é teimosia, não é vontade de embirrar consigo, não é nenhuma luta de poderes.

Mas então o que devo fazer quando o meu cachorro fizer xixi no sítio errado?

Em primeiro lugar, deveria ponderar uma viragem de paradigma na forma de pensar. Em vez de pensar em "como terminar o comportamento X" (que, normalmente, só desencadeia uma série de experiências com novas e novas formas de castigar esse comportamento; formas que se vão tornando cada vez mais pesadas e desesperadas à medida que o comportamento insiste em se manter), pense antes "o que é que eu gostaria que o meu cão fizesse em vez de X?", e, consequentemente, "como promover esse comportamento alternativo?".
Em segundo lugar, leia ou releia os posts anteriores, veja qual é a situação que se aplica ao seu caso (se ainda não tem o seu cachorro, ou se já o tem em casa há tempo suficiente para ele ter criado já um hábito desajustado) e, por último, aplique os passos considerados. Vai ver que tudo se torna muito mais agradável, e menos desgastante; mas, sobretudo, vai ver que a eficácia é surpreendentemente grande.

Ora, por que razão não se deve castigar os xixis e cocós fora do sítio? Porque, simplesmente, estaremos a criar um vínculo entre o castigo e a presença do dono (e não um vínculo entre o castigo e o sítio errado). Não só não ajuda a ensinar o cachorro a fazer no sítio certo, como torna a coisa ainda mais difícil. Porquê mais difícil? Porque, para ensinar de forma sustentada e duradoura o seu cachorro a fazer no sítio correcto, vai ter de lá estar para recompensar; e se entretanto "ensinou" (mesmo que inadvertidamente) o seu cachorro a fazer os xixis e cocós longe de si, fica mais difícil estar lá para recompensar, não acha?

terça-feira, 9 de julho de 2013

WC, aula prática (quando o cachorro já vive em casa dos donos e já ganhou hábitos inadequados)

(para quem estiver com muita pressa, existe um resumo no final; o leitor poderá passar directamente para lá, se assim o desejar)

O programa descrito no "post" anterior, apesar de extremamente eficaz e consideravelmente fácil de executar, tem um índice de aplicabilidade muito curto. Porquê? Porque, simplesmente, as pessoas apenas começam a considerar a questão como problemática quando o problema já está enraizado e quando um hábito errado já está formado. Quase ninguém se preocupa com o problema antes de ter o seu cachorro, e encara com normalidade as primeiras necessidades fora do sítio. Apenas se começa a sentir toda esta questão como sendo um problema quando ele já está bem enraizado.

Em relação a estes casos (infelizmente, muito mais comuns do que aqueles para os quais se aplicaria o programa Errorless Housetraining), existe também a ideia de que é apenas precisa alguma paciência e consistência. Mas isso não só é errado como traz consequências bem nefastas. Ao invés, é bem possível reverter a situação num espaço não superior a três dias. Sim, em dois ou três dias o seu cão pode perfeitamente começar a fazer a totalidade dos seus serviços no sítio certo. Ao contrário do programa anterior, aqui haverá sempre a possibilidade de um ou outro acidente depois desses três dias. Mas o que importa é que cada xixi fora do sítio já será tão raro a ponto de podermos considerá-lo um acidente.

Como fazer? Em termos sumários, trata-se de uma aplicação dos princípio mais basilares do programa Errorless Housetraining de que falámos ontem: não deixar o cachorro à solta com a bexiga cheia; promover condições para que o seu cachorro acerte no sítio desejado algumas vezes seguidas; recompensar memoravelmente cada acerto.
O grande problema é que, por esta altura, o cão já terá desenvolvido uma série de hábitos que servirão de obstáculo ao seu trabalho. Por isso, eu considero que o confinamento de longo-prazo e de curto-prazo não tem grande aplicabilidade. Ao contrário do que acontece com um cachorro que acaba de chegar a nossa casa, não é fácil nem, sobretudo, imediato educar um cachorro que já se habituou a uma rotina de deriva e de liberdade de movimentos a, subitamente, permanecer confinado durante algum tempo.

O primeiro passo a dar será estipular o próximo fim-de-semana como "o fim-de-semana em que o nosso cachorro vai começar a fazer xixi na rua". "Um fim-de-semana inteiro?!?" Sim, é isso mesmo; ou prefere continuar de esfregona na mão mais dois meses?
Se possível, tente arranjar uma folga na segunda-feira, ou arranjar metade do dia, e outra pessoa de casa arranje a outra metade.
No Sábado, levante-se o mais cedo que conseguir. Tente acordar antes da hora normal do seu cachorro "acordar para o dia". Durante os seus afazeres matinais, seja o mais rápido possível e mantenha o seu cachorro em vigilância e o máximo de tempo sentado ou deitado. É essencial que o seu cachorro não faça nenhum xixi ou cocó nesse período. Se vir que é melhor, embale um pequeno-almoço "portátil" de véspera e tome-o na rua. Antes de sair, não se esqueça de levar consigo algumas tiras de fígado cozido, frango cozido, salsichas ou cubos de queijo.
E... vamos para a rua. Vamos passear. Deixe o seu cão cheirar "os cantos" à vontade. Lembre-se do objectivo do fim-de-semana. Tudo o resto é secundário. Alongue o passeio até entre duas a três horas. Não precisa de andar o tempo todo. O importante é que o seu cachorro fique na rua durante esse tempo para poder fazer no "sítio certo". No entanto, não esteja sempre parado, como é óbvio. Estipule qual é o tempo que vai passar na rua; eu acho que ajuda ter tempos bem definidos de antemão. Se, durante este primeiro passeio, o seu cão fizer... já sabe, não poupe nas recompensas! E ajuda se se demonstrar muito contente e amigável com o seu cão. Duas coisas, no entanto: não abuse na histeria e nos afagos... há cães para os quais tais apertos não são muito recompensadores; e, por favor, não seja cerimonioso a dar as recompensas - o tempo de dá-las é no momento exacto em que o seu cachorro termina o serviço. Para isso, convém ter as recompensas à mão. Passado o tempo estipulado, no entanto, é provável que o seu cão não tenha feito nada. Tanto mais provável quanto mais habituado estiver o seu cachorro a fazer as necessidades em casa. Se ele não fizer nada nessas horas, tudo bem, está tudo previsto.
Volte para casa. Assim que estiverem perto de casa, e o seu cachorro já tiver compreendido que estão a chegar, abrande o passo e faça tudo um pouco mais devagar. Por esta altura, o seu cachorro já terá "programado" a sua bexiga para se ir soltando, pois estão prestes a chegar à casa de banho... que, na cabeça dele, ainda é o parquet lá de casa. Assim que chegarem a casa, peça ao seu cachorro para se sentar. Aproveite para treinar o comando 'senta' (ou 'deita'). Recompense-o generosamente, mas, claro, nunca usando as recompensas especiais que reservou para os xixis lá fora. Os 'sentas' servem, evidentemente, para evitar que o seu cachorro se alivie lá dentro. Passado um ou dois minutos deste exercício, é hora de voltar a sair de casa. Por esta altura, como o seu cachorro achava que estavam a chegar a casa, ele já se estava a preparar para ir fazer o seu xixi matinal. Por isso, é bem provável que ele já esteja bem "apertado". Tenha imenso cuidado para que ele não se alivie no elevador ou pelas escadas. Se houver escadas longas para percorrer, ou percursos demorados no elevador, é boa ideia pegar no seu cachorro ao colo ou promover uma viagem de elevador bem sentado!
Uma vez chegados à rua, novamente, estão em território seguro. E agora é bem provável que o seu cachorro já tenha mais dificuldades em aguentar-se. Estipule um tempo de, aproximadamente, uma hora para este novo passeio. Se houver mais do que uma pessoa em casa, é boa ideia repartir os diversos passeios. Se, durante esta hora, o seu cachorro nada fizer, volte para casa e repita o processo. Desta vez, não arrisque sequer ficar mais do que cinco segundos em casa. Mal entra, volta imediatamente a sair. E vá para um terceiro passeio.
Repita este procedimento até que um primeiro e histórico xixi saia! Acredite que vai sair, porque vai mesmo. Pode demorar mais ou menos "passeios", mas acredite que até à hora de almoço vai haver "novidades no pelotão". Este é o ponto mais fundamental do processo: conseguir um primeiro xixi fora de casa e recompensá-lo desalmadamente.
Duas dicas para esta fase: nunca use todas as recompensas para esse primeiro xixi. Lembre-se de que vai haver, algures, um cocó. E lembre-se de que pode haver um segundo xixi. Se apenas um "evento" for premiado, o seu cachorro vai certamente processar a informação como coincidência. E tudo aquilo que nós queremos é que o seu cachorro faça uma associação bem forte entre "xixi na rua" e "fígado, fígado, fígado!!". Segunda dica: após o seu cão ter feito um serviço qualquer, não se dirija para casa. Rapidamente o efeito negativo de "voltar para casa" vai apagar o efeito positivo das recompensas que recebeu. Ao invés, depois do xixi do seu cão e depois das respectivas e imediatas recompensas, torne o passeio mais divertido nesse preciso momento. Faça alguma coisa de que o seu cão goste. Um jogo de "tug", uma corrida... Se houver algum terreno seguro (repito: seguro!) nas redondezas, encaminhe-se para lá, solte-o e deixe-o correr; de preferência, leve umas bolas de ténis e atire-as. Da primeira vez, não vai haver nenhuma associação, mas passadas algumas repetições, o seu cão vai facilmente concluir que todas essas coisas extraordinariamente boas acontecem depois de ele fazer xixi na rua. "Estes humanos são doidos; eles adoram urina na rua. Não acredito que estive este tempo todo a desperdiçar esta minha riqueza renovável no chão lá de casa!".. é mais ou menos este o "pensamento" que queremos que o nosso cão processe.
Volte para casa. É hora de almoço. Mas não é hora para relaxar. Qualquer acidente nesta fase é desastroso. Ainda não houve um historial de boas consequências para poderem abafar um acidente. Passados dois dias inteiros de xixis e cocós na rua altamente recompensados, aí sim, até nos podemos dar ao luxo de ter um acidente pontual... Mas nesta altura, simplesmente, não! Um dos membros da família (podendo haver rotatividade) vai ter de ficar mais de olho no cachorro durante o almoço. Peça ao seu cachorro para ficar o maior tempo possível deitado e, se possível, na caminha dele. E sempre junto de vós! Eu aconselho a que levem um copo com uma porção de ração do seu cachorro (aquela designada para o almoço, por exemplo). Digam ao seu cachorro para se deitar a uns três metros da mesa. E, de 15 em 15 segundos, atirem um pedaço de ração. Ao mesmo tempo que impede o seu cachorro de andar pela casa e poder fazer um xixi aqui ou ali, está a treinar o seu cachorro a ficar deitado, calado e sossegado enquanto o resto da família almoça. (Se quiser continuar com este treino, aumente 10 segundos a cada novo dia; ou seja,  no almoço de domingo já será de 25 em 25 segundos que irá atirar um pedaço de ração).
Assim que terminarem o vosso almoço, também o vosso cachorro terá terminado a dele (a ração que lhe foram atirando ao longo do vosso almoço). Ou seja, na próxima meia hora é altamente provável que um xixi e/ou um cocó estejam para sair. É hora de ir para a rua!
A partir daqui, já sabe a rotina. Estipule uma duração para cada passeio. Ao fim dessa duração, caso não haja novidades, volte para casa, e volte a sair imediatamente. Se houver novidades, premeie entusiasticamente e não volte logo para casa.
Quando o seu cachorro já tiver feito as suas necessidades "pós-almoço", poderá voltar para casa (mas não imediatamente, já sabe) e descansar um pouco. Por esta altura, o seu cachorro quererá tirar uma boa sesta, pois passou a manhã toda para lá e para cá. Aproveite esse facto. Assim que o seu cachorro acordar, ele vai querer aliviar-se, de certeza. Nessa altura, mal ele acorde, leve-o novamente à rua. E, já sabe, espere até ele fazer alguma coisa e recompense vigorosamente quando tal acontecer. 
Repita estes procedimentos ao longo do fim-de-semana (e, se possível, durante também um terceiro dia de folga dos donos). Quando voltarem à rotina da semana, é natural que aconteça um ou outro acidente dentro de casa. O importante é fazer com que os acidentes sejam isso mesmo: acidentes. Ou seja, excepções à regra. Para isso, nos primeiros dias de rotina "normal", certifique-se que o seu cachorro faz as suas necessidades antes dos donos saírem para o emprego. Isto é: passeie o seu cão antes de ir trabalhar. E faça o mesmo quando chegar a casa. O quanto antes. Tudo para que o seu cão fique o mínimo de tempo possível em casa, com o chão "à disposição". 

Duas sugestões adicionais: 

1. Pode, evidentemente, experimentar instituir um plano de confinamento de longo-prazo, tal como o descrito no "post" anterior. Dessa forma, poderá controlar melhor o tempo em que o seu cachorro fica sozinho em casa. O problema, tal como foi dito mais acima, é que, por esta altura, o seu cão já estará habituado a andar à deriva, pelo que será mais difícil habituá-lo ao confinamento do dia para a noite. O meu conselho: ao longo do fim-de-semana, experimente ir promovendo algum tempo de confinamento de longo-prazo. Saia de casa por uns vinte minutos e deixe a gravar (som ou imagem), para perceber se o seu cachorro ficou tranquilo. Se não tem mais tempo para além do fim-de-semana para treinar o confinamento de longo-prazo, e se o seu cão não reagiu lá muito bem, eu aconselharia a não deixá-lo confinado logo na segunda-feira. Isso pode ter efeitos indesejáveis...

2. Durante a primeira semana imediatamente a seguir a este fim-de-semana, é aconselhável que tenha alguém que possa ir a casa passear o seu cachorro de forma a minimizar as horas seguidas que ele passará sozinho. Se não houver alguém de casa disponível para tal, e se não houver nenhum amigo ou familiar que se voluntarie para essa ajuda, considere contratar os serviços de um "dogwalker". É só durante uma semana...


Apesar desta extensão toda, o programa a seguir é relativamente simples. Resumamo-lo:


  • Reserve o próximo fim-de-semana para o efeito. Não faça mais planos. Vai "perder" dois dias de fim-de-semana, mas vai ganhar muito sossego e vai fortalecer a sua relação com o seu cachorro;
  • Na Sexta-feira, prepare alguns lanches para a família. Vai passar muitas horas fora de casa no Sábado e no Domingo; e prepare várias tiras de fígado cozido (ou outras iguarias supremas) para premiar as necessidades na rua
  • Comece o programa, no Sábado, o mais cedo que conseguir. Acorde antes da hora normal do seu cão acordar, e antecipe-se ao primeiro xixi matinal dele.
  • Leve-o o quanto antes para a rua e espere duas horas - é importante estabelecer um prazo; se andarmos na rua indefinidamente, vamos perder mais facilmente a paciência;
  • Se o seu cão não fizer nada, não desespere: volte para casa, e, assim que entrarem em casa, peça ao seu cão para se sentar, aguente um ou dois minutos (vá dando alguns biscoitos para mantê-lo nessa posição durante tanto tempo..., dê biscoitos de valor pouco significativo, para não ofuscar as recompensas "premium" reservadas para o "grande evento");
  • Saia por mais trinta ou sessenta minutos; 
  • Repita o processo até ter o primeiro xixi na rua;
  • Assim que este surgir, recompense de forma bem memorável. Cinco pedaços de fígado cozido, umas festas e umas "sorridentes" palavras de apoio são recomendáveis. 
  • Não volte para casa imediatamente; não associe o xixi ao "fun's over". Ao invés, comece um passeio mais divertido, levando-o para zonas mais atractivas, e promovendo brincadeiras (ajustáveis ao espaço em que estiver, claro)
  • Depois das brincadeiras, volte para casa;
  • Mantenha o seu cachorro na cama dele, no seu colo, deitado no sofá... numa posição em que, para ir fazer novo serviço implicará um movimento bem perceptível. Se ele se levantar, leve-o imediatamente à rua.
  • Os três princípios gerais são: passar muito tempo na rua, ter o cão sob extrema vigilância quando em casa, e sair para a rua mal o cão saia da sua posição de descanso. Não espere para ver se o seu cão vai mesmo fazer ou não. É muito provável que vá mesmo fazer alguma coisa. E, nessa altura, não adianta castigar. O mal já está feito, e o trabalho realizado até aí fica seriamente comprometido. 
  • É por isso que fazemos isto num fim-de-semana: para ter oportunidade de fazer com que o nosso cão tenha vários "acertos" sucessivos. Se fizermos isto dentro da rotina normal, vamos ter um "acerto" entre um ou vários "enganos". Dessa forma, o processo dura muito mais tempo

Acerca do porquê de não ser aconselhável castigar-se o nosso cachorro por fazer no local errado, em circunstância alguma, o abacaxi dedicará o próximo "post". 





sábado, 6 de julho de 2013

WC, aula prática (antes do cachorro chegar a casa)

A melhor forma (a única?) de se educar um cachorro a fazer as necessidades no local certo desde o primeiro dia é aquela descrita pelo assertivo Ian Dunbar. Refiro-me ao programa que o próprio denomina Errorless housetraining (para aceder ao link é preciso registo, que é gratuito). Se implementado sem falhas, este "programa" de treino permitirá que o seu cachorro faça ZERO servicinhos fora do sítio. Se o seu cachorro fizer algo fora do sítio, a prescrição de Ian Dunbar é esta: "pegue num jornal, enrole-o bem enrolado e bata com ele... na sua própria cabeça!; se isso aconteceu é porque não foi capaz de levar a cabo um plano simples de treino". E a verdade é que é um plano extremamente simples. 

A primeira coisa a ter em mente é a seguinte: não deixe o seu cão à solta e à deriva pela casa com a bexiga cheia. Ou seja, a altura de deixar o seu cão à solta e de promover brincadeiras pela casa só pode surgir depois de o seu cachorro fazer xixi. Quanto aos cocós, o procedimento será semelhante, mas apenas nas alturas posteriores às refeições (ou nas alturas que o dono já tiver percebido que são horas do wc do seu cão). Mesmo durante as brincadeiras, é má ideia deixar o seu cão à solta sem supervisão. Regra de ouro: deixe o seu cão à solta apenas quando o próprio dono está com ele, e apenas depois das necessidades feitas.

Segunda coisa: "mas como é que vou fazer para não deixar o meu cão à solta?". É aqui que entram dois conceitos importantes: Confinamento de curto-prazo e confinamento de longo-prazo. 
O confinamento de curto-prazo (também muitas vezes denominado Crate training, embora não seja, necessariamente, a mesma coisa) consiste em deixar o seu cão confinado num espaço relativamente pequeno durante períodos não superiores a 60 minutos. O melhor local possível para manter o seu cão confinado será uma caixa-transportadora. 
"Mas o meu cão não gosta de estar fechado." Então ensine-o a gostar. O treino de cães pode ter muitas definições, mas para mim a única viável é fazer com que o seu cão goste de fazer aquilo que lhe é pedido. Ora: encha um Kong, ou objecto similar, com uma porção (previamente humedecida e congelada) da ração diária do seu cão (das primeiras vezes, eu recomendo que misture algo mais apetitoso, em pouca quantidade, e no topo do Kong, para aumentar a atracção pela coisa). Atire o Kong bem para o fundo da caixa-transportadora e impeça, por alguns segundos, o seu cão de ir lá para dentro, de forma a aumentar a vontade do seu cão lá entrar. Depois, deixe o seu cão entrar, e espere uns 20 segundos para ver se o seu cão se entusiasma verdadeiramente com o Kong. Se ele se entusiasmar, então feche a porta. Ele nem irá notar. Mas, se ele não se entusiasmar, é perigoso fechá-lo nessa situação, pois ele estará focado no facto de ter ficado preso e pode facilmente ganhar aversão à caixa-transportadora. Neste caso, faça um Kong mais atractivo. Eventualmente, irá encontrar uma receita que faça o seu cão esquecer o mundo por alguns minutos. Durante o tempo em que o seu cão estiver confinado na sua "caminha", ele não vai fazer nenhum xixi. Mantenha o seu cão lá dentro durante períodos não superiores a 60 minutos. No final de uma hora fechado na caixa-transportadora, é provável que o seu cachorro tenha vontade de "eliminar". Leve-o até ao sítio desejado (no caso de o WC ainda ficar longe, poderá mesmo levá-lo ao colo para evitar que ele faça pelo caminho). Espere uns minutos. Eventualmente, ele fará qualquer coisa. Aí, não se coíba com as recompensas. Tenha à mão alguns pedaços de fígado cozido para lhe dar imediatamente após o serviço. Se demorar alguns segundos mais, poderá estar já a recompensar um outro comportamento, e não o xixi no local certo. Se ele não fizer nada durante uns 3-5 minutos, volte a colocá-lo na caixa-transportadora. E volte a retirá-lo passados 30 minutos, levando-o novamente ao WC. Repita o procedimento quantas vezes for necessário até que o seu cachorrinho faça alguma coisa. O importante é que ele faça as primeiras vezes no sítio certo; e que, em todas essas vezes, ele seja memoravelmente recompensado. 
Das primeiras vezes, use sempre um Kong bem atractivo para colocá-lo dentro da caixa-transportadora. Não se preocupe, um Kong pequeno leva muito pouca quantidade, pelo que dá para distribuir a quantidade diária de ração por vários Kongs diários. A partir do segundo dia poderá intercalar o Kong com um brinquedo ou um osso para roer. Escusado será dizer que a totalidade de refeições vai ser dada na forma de Kongs e dentro do confinamento. Isto acelerará o gosto do seu cachorro pelo espaço de confinamento. 
Bom. Isso é tudo muito bonito, mas as pessoas têm de trabalhar, e podem não estar disponíveis para tomar todas estas medidas. É aqui que entra o segundo conceito.
O confinamento de longo-prazo consiste em deixar o seu cachorro dentro de uma espécie de parque para cães (similar aos parques para bebés). Dentro desse parque haverá: a caixa-transportadora (ou outro tipo de cama, embora o ideal seja que a cama do seu cachorro seja a caixa-transportadora, por vários motivos, de entre os quais, o confinamento de curto-prazo), um prato para a água, um local designado e preparado para acolher as fezes e a urina do seu cachorrinho, e alguns kongs e brinquedos para o seu cão não só se entreter mas, sobretudo, aprender a adorar o seu "cantinho". O local para as necessidades deverá encontrar-se no canto mais afastado da cama, para aumentar as probabilidade de o seu cão acertar no sítio correcto. Convém que o "wc" seja constituído por um material muito absorvente, para que o seu cachorro possa lá ir mais do que uma vez (se o sítio estiver muito ensopado, o seu cachorro pode escolher um outro...). 
Para ensinar o seu cão a gostar de estar dentro do seu parque, proceda de forma análoga àquela descrita para a caixa-transportadora. Atire um kong lá para dentro, e impeça, por uns segundos, o seu cão de lá entrar; passados alguns segundos deixe-o entrar e feche a porta. Das primeiras vezes, mantenha-se lá por perto. Gradualmente vá-se afastando até deixá-lo durante alguns minutos sem ninguém por perto. Em acrescento, promova alguns momentos de interacção e brincadeira dentro do parque. Tudo com o objectivo de tornar o espaço altamente valioso e agradável para o seu cachorro. Tudo para que ele fique lá contente e tranquilo quando tiver de lá ficar sozinho. 
A diferença entre este tipo de confinamento e o anterior é, como o nome indica, a duração do tempo que o cachorro lá vai ficar. Enquanto o confinamento de curto-prazo (na caixa-transportadora) servirá para as alturas em que os donos estão em casa, e não deverá durar mais do que 60 minutos, o confinamento de longo-prazo servirá para as alturas em que os donos estiverem ausentes. 

Vantagens colaterais: para além de não andar a fazer cocó e xixi indiscriminadamente pela casa fora, o confinamento de longo-prazo vai impedir que o seu cachorro ganhe hábitos destrutivos, vai impedir que ele comece a ganhar gosto em roer os móveis e tapetes de sua casa. Mas, melhor do que tudo, vai habituá-lo a roer apenas e só os brinquedos dele. Porquê? Porque são as únicas coisas disponíveis para ele roer e, sobretudo, são coisas altamente atractivas, recompensando fortemente cada momento de roedura correcta! 
A cereja no topo do bolo é que o seu cão, ao cumprir este programa, está praticamente a treinar-se sozinho a não fazer asneiras quando está... sozinho.

Com o passar do tempo, aumente as zonas de confinamento de longo-prazo e reduza os períodos de confinamento de curto-prazo. Faça-o apenas e só se o seu cão der sinais de que está pronto para "assumir a responsabilidade". Se o fizer com critério e gradualmente, não tarda o seu cão terá livre acesso a toda a casa, ou, pelo menos, às divisões que o dono desejar permitir. 
Curiosa e ironicamente, este é o processo inverso ao processo que ocorre com mais frequência. Na maior parte das vezes, os cachorros começam com liberdade de movimentos quase indiscriminada, e vão vendo as suas liberdades ser reduzidas a pouco e pouco... O processo normal e natural de aprendizagem é o inverso: começar com menos liberdades e responsabilidades, e ir aumentando à medida que o comportamento do cão dá sinais de "merecer a confiança". 


sexta-feira, 5 de julho de 2013

WC

Caros foristas, 
estamos com um problema: o nosso cachorrinho teima em fazer as necessidades no sítio errado. Nós damos passeios longos, e nada; mas assim que chegamos a casa, ele faz logo um xixi no chão. Agradecíamos ajuda, por favor. Obrigado.

Os fóruns sobre cães, por esse mundo fora, estão inundados de tópicos deste tipo. E é normal que assim seja, já que é um problema que afecta praticamente toda a gente que acaba de acolher um cachorro para sua casa. O que me apoquenta é a forma como a esmagadora maioria dos conselhos que são dados sejam deste tipo:

Ah, isso é normal. O que é preciso é ter paciência. Mais tarde ou mais cedo ele acaba por perceber. Tem é de ser consistente. Castigue quando tiver de castigar, recompense quando ela fizer no sítio correcto.

Existem dois enormes problemas neste tipo de conselhos e respostas. O primeiro tem a ver com a vagueza das sugestões. "Ser consistente"? É como se o dono que colocou a dúvida pensasse assim: "uau... nunca me lembrei disso; boa, até agora eu estava a ser inconsistente, mas, sim, agora vou passar a ser consistente". "Recompensar quando fizer no sítio certo"? "sim, boa, como é que nunca me lembrei disso!"
O problema não é ser ou não consistente; o problema é como se ser consistente. O problema não é recompensar quando o cão fizer no sítio certo; o problema é como fazer com que ele faça no sítio certo, e como recompensar.

O segundo problema é mais subtil e, no entanto, mais importante. Parece-me que as pessoas que respondem e dão este tipo de conselhos já não têm cachorrinhos bem novos há muito tempo; talvez nunca tenham tido, pois talvez tenham apenas adoptado cães já adultos ou adolescentes. Digo isto porque me parece que é demasiado grande a desfaçatez e facilidade com que alguém aconselha outra pessoa a ter paciência quando esta passou as últimas semanas ou mesmo meses de esfregona na mão, a trocar a água do balde, a experimentar produtos novos, a pisar cocós, a andar pela sua casa com imenso cuidado para não pisar uma poça de xixi. Se nada fizermos, em termos activos, para corrigir este "comportamento", provavelmente vamos passar uns cinco meses (às vezes mais) nesta rotina. Há pessoas que enlouquecem por muito menos. 
Uma vez mais, o problema está no moralismo que assola a comunidade de donos de cães e na forma hostil com que esse moralismo é destilado contra pessoas que se queixam de problemas que qualquer pessoa considerará... problemáticos. De forma implícita (e por vezes explícita!), há uma mensagem nesses conselhos: 
"ter um cão implica trabalho e dedicação; se não tens paciência para esperar, nem estômago para andar a limpar xixis todos os dias, então não devias ter um cão...".

E é justamente este tipo de mentalidade que forma mais um grande e delicado mito acerca da educação de cães. É mais ou menos tácito e universalmente aceite que um cachorrinho, quando chega a casa dos seus donos, vai fazer alguns xixis e alguns cocós pelo chão da casa; é mais ou menos tácito e universalmente aceite que é com o tempo que eles vão aprendendo a fazer as necessidades no sítio correcto. É tudo uma questão de tempo. Pois, mas durante esse tempo a vida dos donos não é a mais agradável de todas; durante esse tempo cria-se algo extremamente perverso: os donos esperam ansiosamente que esta fase termine quando, na verdade, foi justamente para "apreciar" e "aproveitar" esta fase de cachorrinho que os donos foram buscar um cão com oito semanas...
É contra este mito que gostaria de dizer uma coisa: é perfeitamente possível ensinar o seu cachorro a fazer as necessidades no sítio correcto desde o primeiríssimo dia. E para os casos em que o problema já existe, ou seja, o cachorro já está em casa e já está a fazer as necessidades no sítio errado, também gostaria de dizer o seguinte: é perfeitamente possível ensinar o seu cachorro a começar a fazer as necessidades no sítio correcto em dois ou três dias

É claro que, para tal, é preciso mais do que noções vagas e dispersas como "ser-se consistente", "ser-se rígido, mas justo", "ter-se paciência". Na verdade, este tipo de expressões não querem dizer absolutamente nada. É preciso que haja noções concretas e que se tomem passos bem claros e definidos para se obter os resultados desejados. Para isso, dedicarei os próximos dois "posts" para realizar uma espécie de aula prática para cada uma das situações descritas, isto é, para os casos em que o cachorro ainda não chegou a casa, e para os casos em que o cachorro já está em casa e já começou um hábito incorrecto ou indesejado. 

Para já, no entanto, uma primeira ideia: para melhorarmos a forma como lidamos com este problema temos de deixar cair o mito de que todos os cachorrinhos precisam de tempo para aprender a fazer as necessidades no sítio correcto, e eventualmente acabam por acertar
É mentira. E não só é mentira como é perigoso e desnecessário. A partir da ideia de que é apenas uma questão de tempo, começam a surgir as típicas dores de cabeça, a falta de comunicação entre cão e dono, os castigos desnecessários, os castigos de cabeça quente, os cães começam a acautelar-se perante algumas atitudes dos seus donos (atitudes pouco compreensíveis do seu ponto de vista)... e tudo por causa de um mito que insiste em difundir-se e sedimentar-se.