quarta-feira, 31 de julho de 2013

Centrão, primeira parte


"Um dos grandes problemas dos treinadores de cães é que, normalmente, são muito incompletos. Ora usam apenas castigos e esquecem-se das recompensas; ora usam apenas recompensas e esquecem-se dos castigos. O segredo está em dosear ambas as coisas e encontrar o ponto de equilíbrio. O segredo é dominar ambos os mundos para encontrar o difícil balanceamento entre eles."

Ora, uma vez mais, o moralismo! Discursos como este colhem e captam audiência justamente por apelarem ao moralismo que habita em todos nós e que nos diz, por defeito, que "no meio é que está a virtude". Uma pessoa pode não saber absolutamente nada sobre um determinado assunto, mas a sua inclinação natural é para se posicionar no meio, numa posição intermédia: "Pelo sim, pelo não, fico-me pelo meio... exponho-me menos e ainda dou ares de prudência e abertura de espírito."  É parte constitutiva da nossa natureza colocarmo-nos numa posição de meio termo. A maior parte das pessoas que não se envolve nem estuda muito acerca de ideologia política tem sempre uma posição moderada; pode ser mais de esquerda ou de direita, mas apressa-se sempre a dizer que não gosta nada de extremismos. Parte da nossa forma de nos mostrarmos seres compreensivos e eclécticos passa por aparentar uma posição de abertura para aceitar argumentos das duas partes, e peneirar o melhor de cada uma para formar uma pretensa super-posição constituída apenas pelo melhor de dois mundos.
A estratégia do meio-termo começa por estipular uma realidade maniqueísta, uma realidade formada por dois pólos opostos, e dois pólos apenas. O segundo passo consiste em evidenciar os pontos fortes e fracos de cada uma das partes. E o terceiro passo consiste, finalmente, em fundar uma terceira via, ao centro, que reúna o que de melhor há nas duas partes opostas e que descarte o pior.
Os problemas desta estratégia são vários: em primeiro lugar, raras são as realidades constituídas apenas por dois pólos; cada um desses pretensos pólos é constituído por diferenças internas que fragmentam a realidade em muito mais do que duas simples realidades opostas; em segundo lugar, os pontos fortes de duas posições contrárias raramente são compatíveis, pelo que é apenas estratégia discursiva e ilusória dizer-se que existe uma terceira via que reúne o melhor de dois mundos; em terceiro lugar, uma posição centralista raramente acolhe o melhor das posições polares; ao contrário, de tanto peneirar, aquilo que é acolhido pelo centrão é, invariavelmente, o que sobra dos pólos. Uma verdadeira via alternativa, uma verdadeira terceira via nunca opta pelo meio termo; ao invés de se agarrar ao que já há e seleccionar o que lhe convém, uma verdadeira nova via inaugura novas possibilidades. Em quarto e último lugar, uma posição centralista pode ser tão ou mais ideológica e dogmática quanto as posições polarizadas. O centrão é isso mesmo: uma ideologia do meio-termo, cujo fundamento principal é o de fazer-se passar por eclético e moderado quando, na verdade, defende as suas posições de forma tão dogmática quanto as posições extremistas.
Por todas estas razões desconfio sempre quando alguém forma um discurso baseado numa retórica do meio-termo. E o mundo do treino de cães não escapa a esta lei.

Para que o estimado leitor compreenda em que consiste a posição (retórica) do meio-termo, leia isto. Não vai encontrar melhor representante do que este. Tudo o resto ou é imitação barata ou é de qualidade duvidosa. Esta fonte que aqui lhe forneço tem a seriedade de basear as suas afirmações em largos anos de experiência, tem a honestidade de reconhecer erros passados e aprender novas coisas, mesmo depois de mais de quarenta anos a fazer esses erros, e possui a proeza (difícil de encontrar) de tentar formar um sistema fundamentado de educar um cão.
Posto isto, e uma vez que este texto representa o que de "melhor" há na ideologia do meio-termo, o Abacaxi vai dedicar este e os próximos "posts" a um trabalho crítico do conjunto de ideias apresentadas bem como das consequências e dos preceitos implícitos num tal conjunto. Façamo-lo por partes.

  • Introdução: o apelo à experiência

Comecemos pelo curto texto introdutório, no qual Ed Frawley fala da sua filosofia (leia-se ideologia) de treino e educação de cães. A ideia fundamental desta introdução, bem como o seu maior problema consiste no relevo exacerbado da experiência. A dada altura é dito que «um bom treino de cães reside na combinação de senso comum com uma base sólida de experiência e uma clara compreensão da forma como os cães pensam e interagem (estrutura de matilha).»
Ora, para se ter uma vasta experiência num ramo qualquer é necessário, justamente, acumulação de anos que formem essa experiência. Isso implica que, a dada altura no processo, essa experiência não exista ainda; e o indivíduo que mais tarde virá a ser um profissional experiente, ainda não o é. Ora, como um dos requisitos de um bom treino, segundo Ed Frawley, é ter larga e sólida experiência, isso significa que, durante o tempo em que essa experiência ainda não havia sido constituída, e o indivíduo era ainda inexperiente, o treino por si realizado não poderia ser bom. Logo, um indivíduo que seja "bom treinador", segundo Frawley, é um indivíduo experiente; mas, por definição, toda a sua experiência se baseia em anos de mau treino, que equivalem aos anos em que ainda não se detinha a tal base sólida de experiência. A definição de Frawley de "bom treino" é, em si mesma, absurda, pois baseia-se em algo que se contradiz a si mesmo.
E depois vem o famigerado "senso comum". É verdade que, no inglês americano, "common sense" não é bem "senso comum", mas uma mistura de "senso comum" com "bom senso". Ainda assim, a ideia é extremamente frágil. O senso comum, misturado com o bom senso, é a causa da esmagadora maioria dos problemas que existem no que toca à educação de cães. Aliás, que coisa é essa de senso comum e de bom senso? Desde logo, é algo extremamente variável de cultura para cultura; depois, quando falamos de senso comum falamos de que tipo de comunidade? entre donos experientes e preocupados, certos mitos já se desvaneceram, mas os mesmos continuam a proliferar no senso comum de outros grupos com outros interesses... Basicamente, o apelo ao senso comum e ao bom senso é uma bela desculpa para se evitar um estudo pela via da ciência, e para se validar um tipo de conhecimento baseado nas experiências próprias. O problema é que, como se sabe, as experiências variam de caso para caso e não têm nem podem ter qualquer valor de universalidade ou generalidade. 
No caso específico deste texto de Ed Frawley, o apelo ao senso comum é apenas uma legitimação do valor que é conferido à experiência. O grande argumento inicial de Ed Frawley é, pois claro, a sua vasta experiência. Mas note-se no seguinte:  a experiência de Ed Frawley no ramo é, segundo o próprio, superior a 50 anos de trabalho directo com cães, e mais de 40 anos de trabalho profissional. No entanto, há cerca de 12 anos atrás, o próprio Ed Frawley fez uma grande viragem nos princípios que regiam o seu treino, e hoje admite que uma parte significativa do seu trabalho anterior ao início do presente século está ultrapassado e, usando palavras suas, não passava de uma grande porcaria ("it's rubbish!"). Não está em causa a viragem e a renúncia; ela não deixa de ser digna de realce: é preciso uma dose considerável de honestidade e despojamento de si próprio para admitir 30 anos de erros. O que está em causa é que, durante mais de trinta anos, Ed Frawley concebeu práticas que hoje reprova; o que é que isso diz acerca do argumento da experiência? Simplesmente, a experiência tem um papel muito relativo em tudo isto. Não foi por fruto da experiência que Ed Frawley terá mudado de opiniões; terá sido pelo confronto com outras perspectivas, pelo advento e sucesso comprovado de vias alternativas que fizeram Ed Frawley rever os seus princípios, e rejeitar alguns deles. A experiência nunca pode valer como argumento que comprove a legitimidade de uma determinada ideia. Por cada indivíduo com 30 ou 40 anos de experiência que defenda uma determinada ideia, existem quatro ou cinco com experiência igual ou superior que defendem uma ideia contrária. A experiência vale muito pouco, a partir do momento em que vários profissionais com o mesmo nível de experiência chegam a conclusões opostas. E valerá ainda menos quando se trata de conceitos de teor científico. Eu posso um dia chegar a ter 50 anos de prática diária de lavar louça manualmente; mas isso não me vai dar créditos alguns se eu quiser construir um discurso acerca do modo de acção do ácido linear alquil benzeno.. 
Conceitos como os de dominância têm um âmbito bem definido dentro da área da Etologia. Para se falar dele é preciso, pelo menos, ouvir o que está disponível no corpo discursivo da ciência respectiva. Não faz sentido basear todo um sistema de treino e educação de cães num conceito cujo tratamento científico não só se ignora como se coloca propositada e conscientemente de lado. A experiência é manifestamente insuficiente e, sobretudo, nunca pode legitimar nenhum discurso com pretensões de validade universal e sistemática.

(continua...)

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