quinta-feira, 25 de julho de 2013

Não fui eu!

"O meu cão não me deixa dormir. Ele ladra a noite inteira."
"Hm, e qual a sua acção quando isso acontece?"
"Tento castigá-lo, mas nada, ele continua."
"Cuidado com a forma como castiga o seu cão."
"Como assim?"
"Convém que o faça de forma 'despersonalizada'."
"Ãh?! o que é isso?"
"É um tipo de castigo que é aplicado mas de forma a que o cão não perceba que foi o dono que o aplicou"
"Ah, estou a ver. Mas por que razão se faz isso?"
"Para que o cão não aprenda a associar as más consequências ao seu dono."
"Mas não deveria associar? Não deveria ele perceber que sou eu mesmo que o estou a castigar?
"Pois, mas se ele fizer essa associação, a sua ligação com o seu cão pode ficar deteriorada"
"Mas não é esse o objectivo do castigo: fazer com o cão perceba que eu não aprovo tal comportamento? Não deveria eu estar a assumir o papel de líder?"
"eerr, pois, isso é verdade. Mas é melhor que o nosso cão não nos associe aos castigos. Isso pode arruinar a nossa relação com ele..."

Uma das mais recentes modas no treino de cães incide sobre aquilo a que se vem chamando de "punição despersonalizada" (em rigor, isso já se faz há muito, mas a voga do termo é recente, e, com ela, toda uma ideologia adjacente...). O seu princípio é bastante simples: o dono castiga o seu cão mas fá-lo de forma a que o cão não saiba que é o dono que o está a castigar. Tudo em nome da manutenção do vínculo que une dono e cão. Vínculo? Mas qual vínculo? Que vínculo é esse que poderá ser ameaçado pelo facto de corrigirmos o nosso cão frontalmente? Ou deverei perguntar, antes, que castigo é esse que ameaça deitar abaixo o vínculo entre o dono e o seu cão? Das duas, uma: ou o vínculo é extremamente frágil, ou as correcções são demasiado vigorosas. Ou, se calhar, as duas ao mesmo tempo. É que se o vínculo é forte e se a correcção é suave, justa e ponderada, por que raio alguém poderá pensar que o vínculo pode ser desfeito, destruído? 
O mais grave, ainda, reside na forma como toda a lógica pela qual nós educamos os nossos cães é pervertida. Educar um cão é comunicar com ele; a beleza do treino e da educação dos nossos cães é que lhes estamos a ensinar a comunicar connosco, comunicando com eles. Educar um cão é fortalecer o vínculo que nos une. Ora, tudo isto é pervertido quando começamos a congeminar esquemas, montar dispositivos, elaborar engenhocas que castiguem os cães despersonalizadamente, que é o mesmo que dizer, castigar os cães e fingir que não fomos nós. Haverá forma mais perversa, desonesta e cobarde de educar um cão? Se tem dificuldades em conceber o que é um castigo despersonalizado, é só ver os Alexandres Rossis desta vida a enrolar latas com fios fininhos que vão dar a uma tábua que está em cima do balcão da cozinha para que, quando o cão saltar para o balcão e tentar roubar comida, as latas caiam e provoquem um barulho que assuste o cão (esquema bastante estúpido e ineficaz, porque, se o cão tentar uma segunda vez, o barulho já não acontece, e não se cria nenhum padrão de consequências más para o respectivo comportamento); é ver os líderes da matilha desta vida emularem a boca de um cão com os dedos para fingir que, naquele momento, nós próprios somos um cão (um cão esquisito, que tem dentes no fim dos membros e não na boca) e não o humano que lê livros, vê televisão, segura na trela dele mas não usa nenhuma, faz xixi de pé e numa sanita, veste roupas e come com talheres (tudo coisas muito caninas, com certeza); é ver os Rabah Madjer desta vida a dar toques de calcanhar no lombo do cão para "redireccionar" a atenção deste sem que ele perceba que fomos nós que o fizemos; é ver os Muay Thai do treino canino que, para ensinar o cão a não saltar para cima do dono quando este chega a casa, fingem estar muito contentes com o cumprimento dos seus cães, mas, ao mesmo tempo, colocam o joelho de forma a causar um impacto desagradável e, assim, dissuadir o seu cão de repetir a proeza. Repare o estimado leitor no empenho engenhoso de que tanta gente é capaz só para não ter de confrontar o cão. Repare no tempo que muita gente gasta para não gastar tempo a educar os seus cães. 

É neste contexto que surgem as coleiras de choques eléctricos. Para além de poderem castigar o cão à distância, estes dispositivos permitem também providenciar más consequências para os comportamentos errados dos cães sem que essas más consequências sejam associadas ao dono. A mecânica da coisa é mais ou menos esta:
> o cão está a aprender a seguir o dono, com ou sem trela > enquanto segue o seu dono, nada acontece, nem de bom nem de mau (ou até podem acontecer coisas boas, como o dono ir dando biscoitos; para o efeito em causa, tanto faz) > no momento em que o cão se distrai e segue outro caminho, ou simplesmente pára, leva um choque (sobre a retórica do "não é bem um choque, é uma vibraçãozinha de nada", já se falou aqui no abacaxi, portanto, não venham com histórias, por favor) > o cão assusta-se, olha para o dono > este como que diz "não fui eu" > e cão volta a seguir o dono > o processo repete-se algumas vezes até que o cão aprenda a lição. 
E que tal tirar um tempo para ensinar o cão a gostar de seguir o seu dono? E que tal tirar um tempo para construir uma marca verbal de correcção de comportamento (um non-reward mark, de que falaremos a devido tempo)? E que tal ensinar o seu cão a comunicar consigo e aprender a comunicar com ele?
Qual é o objectivo da educação do seu cão: dar espectáculo no parque e ter um cão que o segue mesmo sem trela, ou aprofundar a relação que tem com o seu cão? Quando alguém coloca uma coleira de choques no pescoço do seu cão, não preciso de ouvir absolutamente mais nada para saber quais são as suas prioridades. 

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