segunda-feira, 22 de julho de 2013

Buzz

«Desculpe, o que é que o seu cão traz ao pescoço?»
«Ah, é uma coleira de choques.»
«Choques? Tipo quê?... eléctricos?»
«Sim.»
«Isso não soa nada bem.»
«Ah, não, eu só uso no grau mínimo de intensidade.»
«Grau mínimo?»
«Sim, existem vários graus de intensidade, e eu uso no grau mínimo.»
«Então apanha um choque pequeno, é?»
«Nem é bem um choque, é uma pequena vibração. Como a vibração de um telemóvel, sabe?»
«Então, por que não se chama colar de vibrações?»
«Porque se for nos graus mais elevados, aquilo dá um choque, de facto.»
«Mas o senhor só usa no grau mínimo.»
«Sim.»
«Mas há quem use nos graus mais elevados?»
«Err, é possível, mas eu não, eu não.»


Uma grande fábula contemporânea é contada acerca dos colares de choques eléctricos, segundo a qual estes colares apenas realizam uma pequena vibração no pescoço do cão. Se fosse apenas por uma pequena vibração, esse colar nunca realizaria qualquer acção de castigo. Creio que por esta altura já lhe foram apresentadas, aqui pelo Abacaxi, razões suficientes para compreender por que motivos isto não passa de um logro retórico. 
Um choque ministrado para castigar o comportamento errado é uma forma de castigo positivo. Não importa a intensidade: a sua função é fazer associar o comportamento errado a algo desagradável de modo a reduzir as probabilidades de que o cão repita esse mau comportamento. Ora, já se viu que um castigo positivo apenas é eficaz se for realmente aversivo. Se for algo pouco ou nada desagradável para o cão, o castigo positivo não se sobrepõe aos estímulos que levam o cão a ter o comportamento "errado". Por exemplo, o cão encontra-se solto, num parque, e sai do perímetro desejável; o dono ministra um choque por controlo remoto; se este choque for pouco ou nada incómodo, o ímpeto que levou o cão a sair daquele perímetro continua a ser primário e superior em relação a qualquer estímulo contrário. Ou seja, se o cão, em primeiro lugar, saiu dali da zona, terá havido algum estímulo (um cheiro, um cão ao longe, um lago com patos...) que o atraiu; para que o choque ministrado seja correcção "suficiente" para que o cão perca o interesse em sair do perímetro, ele terá de ter uma intensidade maior do que aquela apresentada pelo estímulo referido. 
Numa palavra, pelas leis mais básicas da aprendizagem, o cão apenas vai deixar de realizar um determinado comportamento se as consequências para esse comportamento forem "mais más do que boas"; para isso, quando um dono usa uma coleira de choques, o choque-correctivo terá de se superiorizar ao apelo que o cão sente em fazer um determinado comportamento (aos olhos do dono, indesejável). Ou seja, terá de ser aversivo o suficiente. Não basta uma vibração para dissuadi-lo. Nos casos em que basta uma vibração, então por que raio se recorre à coleira? Se uma vibração é suficiente, isso significa que o grau de distracção do cão não é assim tão grande, nem sequer o estímulo que o está a atrair não é assim tão intenso; logo, bastaria uma simples indicação verbal da parte do dono. Em vez de colocar uma coleira de vibrações no pescoço do nosso cão, por que não investir em reforçar o poder da chamada verbal?

O que me faz mais confusão continua a ser o seguinte: como é que é possível que as pessoas acreditem nesta retórica tão frágil? Como é que é possível que as pessoas caiam no encanto do discurso do "é só uma vibração"? Colocar um colar de choques no pescoço do nosso cão nunca pode ser uma decisão feita à pressa; como tal, eu esperaria que as pessoas pusessem o seu sentido crítico a funcionar antes de fazê-lo; e, se o fizessem, certamente chegariam à conclusão de que uma vibração apenas nunca será suficiente para fazer aquilo que a nossa voz não consegue. Mas não: as pessoas continuam a não fazer este raciocínio. Por que será?
A justificação para que tanta gente caia neste engodo está, mais uma vez, na perspectiva moralista de conceber um cão. Só isso pode justificar tamanha falta de sentido crítico. Se um colar de choques corrigisse um cão apenas por despoletar uma ligeira vibração, o mundo seria tal que o cão tivesse uma percepção moral das suas acções. De tal forma que a ligeira vibração funcionasse como um "ei, o teu comportamento está errado". Era como se o nosso cão pensasse: "ups, cometi um erro, peço desculpa, peço desculpa". Mas, se assim fosse, não bastaria a voz do dono para dar a entender uma tal mensagem?

Existem tantas coisas erradas nesse processamento de informação que me é custoso sintetizá-las. Aqui vai um esforço nesse sentido:

  1. Não é por um reconhecimento moral do erro que os nossos cães aprendem: é, antes, pelas consequências que os comportamentos têm;
  2. Se as consequências das correcções são menos intensas do que as consequências inerentes ao comportamento, o cão não vai deixar de realizar esse comportamento;
  3. Ou seja, para que um colar de choques faça realmente efeito, ele vai ter de fazer mais qualquer coisa do que ministrar umas simples vibrações;
  4. Qual é o apelo em fazer do nosso cão um carro telecomandado? Se queriam um Niko Turbo Panther, por que razão escolheram um Labrador preto? 
  5. Qual é o apelo em estabelecer uma relação com o nosso cão baseada numa comunicação binária, informática e consumada em vibrações? Se queriam um Galaxy S3, por que razão escolheram um Boxer tigrado?
Mas, então, o que fazer em vez de ministrar choques? A primeira resposta que tenho para dar é: estabeleçam uma relação com o vosso cão. E a melhor forma de estabelecer uma relação com um cão é apostar na educação. Na do cão, mas também na do dono. Só depois de compreendermos melhor o que é um cão é que podemos educá-lo. E, sim, a melhor forma de comunicar com o nosso cão é ensinar-lhe as bases dessa comunicação. E parece-me extremamente boçal basear a nossa comunicação em vibrações e choques à distância. Implique-se na educação do seu cão. Se tiver de corrigi-lo, faça-o honesta e frontalmente. Não há conceito mais detestável do que "a correcção despersonalizada" (sobre isto, dedicarei um curto futuro "post").
Mas, então, o que fazer, em concreto? É-me um pouco constrangedor ter de responder a esta pergunta, porque me parece óbvia a resposta. No entanto, o próprio princípio de que parte o presente texto baseia-se na realidade de que existe uma estranha dificuldade em responder a esta pergunta. Razão pela qual o Abacaxi fará o esforço de lha dar: treine o seu cão. Ponto. Em vez de delegar o comportamento do seu cão a um dispositivo electrónico emissor de choques, eduque o seu cão a gostar de fazer aquilo que pretende que ele faça. De que forma? Quais as alternativas aos choques? Para isso, é preciso ver em que situações surge o recurso à coleira de choques. Só consigo antever três situações nas quais alguém use uma coleira de choques: (i) para controlar o cão à distância (isto é, sem trela), nomeadamente para "treinar" a chamada do cão; (ii) providenciar um castigo despersonalizado, de forma a que um determinado comportamento cesse, sem que o cão associe o castigo ao seu dono, não estragando, assim, a relação; (iii) uso específico de uma coleira anti-latido, de forma a "ensinar" o cão a não ladrar.
Os três próximos "posts" irão abordar estes três "casos", em específico. 

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