sábado, 27 de julho de 2013

Silêncio, por favor

"Desculpe, mas..."
BUZZ
"...eu gost..."
BUZZ
"...ava de pedir..."
"BUZZ"
"que me ti..."
"BUZZ"
"...rasse isto..."
BUZZ
"...do meu..."
BUZZ
"... pesco..."
BUZZ
"...ço, porque..."
BUZZ
"...é isto mes..."
BUZZ
"...mo que me..."
BUZZ
"...está a dei..."
BUZZ
"...xar nervo..."
BUZZ
"...so e a fazer-..."
BUZZ
"...-me falar..."
BUZZ
"...sem parar..."
BUZZ
"...PORRA."
BUZZ

Um cão tem várias formas de comunicar. Ladrar é apenas uma delas; uma entre muitas. Mas todas as restantes implicam uma proximidade física e um grau suficiente de visibilidade. Quando o "receptor" das mensagens não se encontra no horizonte, a única forma de um cão se expressar é vocalizando. Se um cão ladra em demasia quando está sozinho em casa, o problema não está nos latidos, mas no tédio, na solidão, no aborrecimento que advém de não ter nada que fazer nem ninguém com quem estar. A solução passa por enriquecer o ambiente do cão nos tempos de solidão, e estimulá-lo ao máximo no resto do dia, para que os períodos de solidão sejam mais dedicados ao descanso. Se um cão ladra na presença do carteiro, o mal não está no ladrar, mas no incómodo que essa presença causa no cão. A solução passará por uma dessensibilização ao estímulo em causa, e a prevenção estaria numa rica e continua socialização com elementos estranhos. Seria de esperar que profissionais com mais de quarenta anos de prática chegassem a este tipo de conclusões de forma instantânea. Mas não. Por razões misteriosas, ainda há quem prefira concentrar-se no ladrar em si mesmo; ainda há quem se concentre em formas de terminar com os latidos, sem se preocupar no que lhes está subjacente. Invariavelmente, quando isto acontece, a recomendação recai no uso de um colar de choques ajustado para ser accionado ao som dos latidos do cão. O cão ladra, recebe um choque. O cão ladra, recebe outro choque. E por aí fora. «A beleza do sistema é que a estimulação da coleira [de choques] pode ser ajustada para um valor em que o choque não aleija, sendo apenas ligeiramente desconfortável», ouvimos dizer de experimentados e reconhecidos profissionais. A beleza? Qual beleza, meus caros? Que beleza há em relegar a educação dos nossos cães para instrumentos que até nem aleijam muito, e só provocam um ligeiro desconforto? Uma coisa é usar instrumentos que nos ajudem a aprofundar a nossa comunicação com os nossos cães; outra coisa é usá-los para não ter de educá-los de outro modo. 
Em primeiro lugar, a mim não importa se a coleira dá choques muito intensos ou só ligeiramente intensos; por mim até podiam fazer cócegas: é uma desculpa boçal para treinar o cão desde o sofá. 
Em segundo lugar, não me venham com tangas, ok? Se um cão deixa de ladrar devido aos castigos induzidos pela coleira, creio que não é preciso ser muito especulativo para se perceber que o incómodo causado está longe de ser apenas "ligeiramente desconfortável". Quando um cão ladra, sobretudo por recreação quando está sozinho, quando está ansioso pela separação dos seus donos, ou quando está na presença de figuras como carteiros ou ardinas que pairam no portão de casa, esse ladrar é já manifestação de um estado intenso de nervos, ansiedade, desconforto. Para que um cão deixe de manifestar esse desconforto e essa ansiedade pela forma que lhe é mais natural, imaginemos todos nós que a coleira de choques não está apenas a ministrar uma vibraçãozinha.
Em terceiro lugar: castigar e cessar os latidos não elimina as razões pelas quais o cão está a ladrar. Bem pelo contrário, só se está a aumentar a intensidade da ansiedade e do desconforto em causa. Quando alguém coloca um colar "anti-latido" no pescoço do seu cão, uma de duas coisas está a acontecer: ou não consegue entender absolutamente nada da constituição do seu cão, ou tem as suas prioridades tremendamente pervertidas, pois prefere apagar o desconforto (seu e dos vizinhos) que existe em ouvir o cão ladrar, em vez de se preocupar em cuidar das razões que levam o seu cão a ladrar tão intensamente. No caso de donos inexperientes, a primeira possibilidade é, vá, admissível. No caso de experimentados e reputados profissionais, as duas são igualmente deploráveis. 

Para compreender melhor estes três pontos, imagine o caro leitor que está num desses programas para deixar de fumar baseado na administração de choques eléctricos. 
Se recorreu a este método, acredito que o seu vício é consideravelmente acentuado. De outro modo, procuraria outro método, não? Estou certo de que preferiria deixar de fumar usando métodos não só mais saudáveis e menos extremos, mas, sobretudo, métodos que tivessem mais a ver com a sua própria vontade e não com um tipo de condicionamento externo e maquinal. Portanto, ponto um, usar os choques como forma de educar um hábito é um recurso que passa por cima de uma educação comunicativa e voluntária. Em fumadores e em latidores. 
Muito bem, se tem um vício vincado, então teremos de admitir que não é com cócegas nem com vibrações de telemóvel que a coisa vai lá. Esperneie por onde quiser, argumente o que lhe apetecer: os choques têm de ser aversivos o suficiente para que o leitor perca a vontade de fumar. Não há volta a dar-lhe. Portanto, ponto dois: os choques, para funcionarem, têm de ser intensos o suficiente para quebrar um hábito que, de si, é bastante forte e auto-reforçante. Para fumadores e para latidores.
Agora imagine que fuma por razões de ansiedade ou nervosismo; fuma para aliviar esses estados internos. Ou então, fuma como forma de colmatar momentos de solidão (isto é, para preencher as alturas em que se encontra em público, mas sem companhia). Já se sabe que o comportamento humano é extremamente complexo, e ninguém fuma apenas por uma razão tão clara e linear; mas pronto, façamos este exercício para manter a analogia. Ora, se deixar de fumar por causa da estimulação aversiva que os choques lhe provocam, isso não vai apagar os motivos pelos quais fumava: uma sessão contínua de choques não vai deixá-lo menos ansioso, menos nervoso, nem vai colmatar a sua solidão. Portanto, ponto três, usar choques como forma de parar um hábito não apaga as razões que estão por detrás desse hábito. Em fumadores e em latidores.
E, por fim, imagine que, de todas as vezes que levar choques eléctricos, o técnico que o auxilia está à sua frente. Mas quando não está a levar choques, esse técnico sai de cena. Ora, depois de várias sessões, a presença desse técnico (que apenas está presente na altura dos choques) torna-se antecipador das sensações que os choques lhe provocam. Se acha que não, pense lá bem: o resultado de uma terapia de choques é que o fumador, de todas as vezes que voltar a pegar num cigarro, tem uma náusea extremamente desagradável por causa da associação que lhe foi causada entre o acto de pegar num cigarro e o choque sofrido. Ora, se o choque está associado, não apenas ao acto de pegar num cigarro, mas também à presença daquele técnico em específico, a sensação desagradável também se estende a essa presença.
Agora imagine que não é um humano, com toda a sua capacidade de abstracção e de racionalização das questões; imagine que é uma verdadeira máquina de estabelecer associações: imagine que é um cão. Imagine que costuma ladrar sempre que vê um carteiro e, agora com uma coleira anti-latido, de cada vez que um carteiro está diante de si, leva um choque, porque ladrou. Ora, imagine lá que efeitos este tratamento de choque vai fazer em relação a impressão que vai ter do carteiro. Agora imagine que os cães ladram por mais razões e levam choques em todas essas ocasiões: presença de carteiros, de lixeiros, presença de outros cães... Será de admirar que grande parte dos cães que usam ou usaram coleiras anti-latidos são cães muito pouco sociáveis?

Voltemos, enfim, à epígrafe inicial. Ladrar é uma forma de expressão dos cães. Usar uma forma de castigar cada latido do cão não faz sentido nenhum. Deixa o cão sem qualquer tipo de escolha. Perante situações de perigo ou desconforto, um cão tem sempre três formas de reagir. Fugir, lutar e desistir (suprimir qualquer tipo de actividade; entrar num estado de zombie). Perante um choque de uma coleira, um cão não pode fugir, nem pode lutar. Entra num estado de learned helplessness, num estado de zombie comportamental. Tal cão não aprendeu a deixar de ladrar: aprendeu a desistir de se expressar. O resultado é o mesmo? As prioridades de quem achar que o resultado é o mesmo são, quanto a mim, muito claras: o que importa é terminar os latidos, não importa como, nem importam as consequências.
Não quero dizer que, por ser natural, os latidos devam ser ignorados. Mas se existem outras formas de lidar com eles, por que razão recorrermos a um dispositivo tão frio (porque usa um tipo de comunicação perversa e distante), doloroso (porque inflige dor, digam o que disserem), ineficaz (porque não ataca as causas do problema), castrador (porque remete o cão para uma situação de não-comunicabilidade) e perigoso (porque provoca danos colaterais muito graves no comportamento futuro)? Porquê?



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