quinta-feira, 18 de julho de 2013

Deixa andar, deixa passar


"Ei, grande cão. Adoro Dobermanns. Também tive um, há uns tempos"
"Já morreu, foi?"
"Sim, tivemos de abatê-lo. Teve de ser..."
"Teve?"
"ya, tu sabes, aquela cena deles ficarem malucos, com a idade. Ele já tinha 8 anos...".

Depois de melhor espremida a história, percebeu-se melhor o que é que tinha acontecido, na verdade. O cão era sempre deixado a comer sossegado. E nada se passou... até ao dia em que a mãe deste rapaz passava por perto, deixou cair alguma coisa que caiu nas imediações do prato. Baixou-se para apanhar esse objecto, e o cão... isso mesmo, foi-lhe ao lombo.
A senhora, tão habituada aos oito anos sem preocupações, nem se lembrou de que poderia estar a invadir uma esfera proibida. Não foi capaz, sequer, de vislumbrar qualquer aviso que tivesse eventualmente existido. (Aliás, de um membro de uma família que possui um Dobermann durante 8 anos e ainda acredita num dos mitos mais ridicularizados dos últimos anos, não seria de esperar que fosse capaz de ler sinais de aviso e agressividade de um cão, mas isso é outra história).
Simplesmente se baixou para apanhar o que tinha deixado cair. Na cabeça dela, nem sequer ia tocar no prato. E mesmo que fosse, tanto quanto sabia, o seu cão não era agressivo nem "mau para os donos"...
Acontece que o problema que se designa como "protecção de recursos" (Resource guarding) tem muito pouco a ver com a forma como o cão se comporta no resto da sua vida. Mas não é de Resource guarding que se pretende falar hoje (haverá certamente mais oportunidades para fazê-lo). Pretende-se falar de algo muito mais simples mas também muito mais difícil de desconstruir.

O que é que de errado se passou na história? Certamente que uma grande parte das pessoas se concentrará na crença idiota num mito sem pés nem cabeça como esse que "afecta" a raça Dobermann. Mas o estimado leitor, não, o estimado leitor tem um espírito mais crítico e aguçado. Certamente não lhe terá passado ao lado a questão fundamental: à conta de um outro hábito mitificado, um cão morreu, e se em vez de ter sido um adulto, naquela hora tivesse sido uma criança, esta também poderia ter morrido. Qual hábito? A ideia de que "deixar o cão ser cão" implica uma série de coisas, nomeadamente, não importuná-lo na hora da refeição.
Ideia que se alia a uma outra, contígua: a ideia de que treinar um cão é, muitas das vezes, robotizá-lo, incomodá-lo, stressá-lo. Ainda não consigo reagir com naturalidade quando alguém argumenta que o treino de um cão o prejudica, e que devemos deixar em paz "o coitado do bicho". Uma coisa é olharmos com crivo crítico para a forma como muitos "treinadores" abusam da desculpa da educação para passar o limite do admissível. Outra coisa é defender uma atitude de laissez faire na educação dos nossos cães. A maior parte dos ataques violentos que vemos serem noticiados não provém de um ensino específico no sentido de o cão ser agressivo. Provém, antes, de educações passivas, que reflectem o espírito "naturalista" a que me refiro aqui. Esta ideia de que devemos deixar o cão ser cão (e não um robot) tem consequências drásticas. Consequências que estão espelhadas no diálogo epigráfico deste "post". 
A pergunta que eu gostaria de ver respondida é: "mas o que é isso de deixar o cão ser cão?" A todas estas pessoas que se identificarem nessa ideia, eu lhes contra-respondo: então deixem lá os pobres dos canitos fazerem os seus xixis e cocós pela casa; deixem-nos usar a boca sem limites para comunicarem convosco, afinal, tratam-se de cães; deixem-nos trepar para as vossas pernas e braços e copular com eles. Deixem andar, deixem passar. Ah, concordarão que há limites para esse naturalismo todo, não é verdade? Pronto, então passemos ao segundo passo.
Onde é que esses limites devem ser definidos? O que é que é aceitável e o que não é? E qual a justificação para que uma coisa o seja, mas outra não? O meu conselho: parem com os moralismos que vos atrofiam a mente, e pensem que educar um cão é a forma mais profunda e intensa de nos envolvermos com eles; educar um cão é, também, a forma mais justa que temos de integrá-los num mundo que não é bem o deles. 
E educar um cão é dar-lhe a conhecer as regras deste ser estranho com que convivem; mas é também fazer um esforço para conhecer os vários traços que definem a natureza do cão. Tal investimento na compreensão de uma natureza distinta da nossa fornece-nos um sem número de noções de que não dispomos naturalmente, nem usando o nosso tão afamado bom senso. Não, não basta o bom senso; é preciso mesmo estudarmos, lamento. 
Uma dessas noções de que não dispomos sem nos dedicarmos a estudar e compreender a natureza dos nossos amigos refere-se a esse instinto de protecção e guarda de recursos. Compreender esse instinto implica compreender que ele é natural e, contudo, complexo. O facto de ser natural apenas importa para que percebamos que nenhum cão está a licitar algum tipo de guerra de poderes com os donos quando lhes rosnam perante o prato de comida; no entanto, o facto de ser natural não significa que seja desejável. Morder também é um comportamento natural; ladrar também; isso não significa que deixemos de educar os nossos cães a moderarem esses comportamentos. Numa palavra, o facto de ser natural não impede que seja um problema. Neste caso da protecção e guarda de recursos, o mesmo se aplica. Existem formas de preveni-lo. E existem formas de tratá-lo, quando já é um problema existente. Nenhuma delas implica algum tipo de menosprezo da natureza do cão; nenhuma delas implica qualquer tipo de desconforto, confusão ou perturbação do cão. Pelo contrário, implica que o nosso cão passe a adorar de cada vez que nós nos aproximamos do seu prato quando ele está a comer. É mesmo esse o objectivo. 
Mas ainda há quem insista em deixar andar, em nome da tranquilidade do cão. Caro leitor, pergunto-lhe: qual é o cão que lhe parece mais tranquilo, o cão A que, quando está a comer, rosna a todos que se aproximam dele, ou o cão B, que pouco se incomoda com qualquer aproximação que haja? "ah, mas ninguém tem de se aproximar dele quando ele está a comer". Se o caro leitor se encontra a pensar isto, neste momento, eu perdir-lhe-ei desculpas, mas dir-lhe-ei que isso é uma demagogia tremenda. Conseguirá garantir-me que, nos próximos 12-15 anos, todos os dias, duas vezes por dia, vai garantir que ninguém se vai aproximar do seu cão quando ele estiver a comer? É que estamos a falar num evento que vai ocorrer umas 10950 vezes... Não vai haver crianças em casa, não vai haver nenhuma vez em que seja preciso mexer em algo ali perto do prato do cão? Não vai?, o que é que lhe garante? E mesmo que minta para si próprio e diga que sim, que vai conseguir garantir um tal hercúleo controlo das variáveis possíveis, pergunto-lhe se prefere este nível de constrangimentos prolongados a perder uns diazitos e tornar o seu cão num cão mais tranquilo e estável?
Infelizmente, há quem prefira deixar andar... 

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