terça-feira, 25 de junho de 2013

As metamorfoses da comida, ou o "outro" condicionamento - parte II

(continuação)

Mas o que é, em concreto, o condicionamento clássico? Condicionamento clássico é a forma como tudo aquilo que está associado a um determinado objecto ou situação começa a ser associado a um outro objecto ou situação que acontece perto e simultaneamente. O condicionamento clássico acontece a toda a hora, com ou sem intervenção dos donos. Na socialização de cães, o que se faz é um trabalho de condicionamento clássico. Consideremos o caso da socialização com crianças: uma criança aparece enquanto passeamos o nosso cão; nós pedimos-lhe para dar uns pedaços de comida (ajuda se for "especial", tipo pedacinhos de fígado cozido) que entretanto leváramos no bolso. Depois de repetido várias vezes este processo, o cão passa a associar a presença de crianças a "altura em que recebo, do nada, vários pedaços de comida especial". O cão passa a adorar crianças. Claro que o contrário pode acontecer: o cão passa por uma criança; esta, enquanto criança, solta uns gritinhos, saltita diante do cão, faz festas que equivalem a desagradáveis pancadas na cabeça, puxa o rabo e as orelhas. O cão passa a associar crianças a todas essas diabruras, e, depois de repetidas experiências semelhantes, o cão passa a não gostar nem confiar em crianças. Num e noutro caso, o que acontece é puro condicionamento clássico; não há menos condicionamento clássico se as associações forem negativas. Portanto, se o condicionamento clássico está sempre a acontecer, o melhor mesmo é tirar partido da sua acção e dos seus efeitos, voltá-los a nosso favor.
Um segundo exemplo: o caro leitor imagine que vive numa zona seca do interior; no verão, a água escasseia e as culturas morrem. Entretanto, começa a chover. Mesmo que o leitor tenha vivido durante algum tempo num ambiente urbano, cinzento e chuvoso, nesse momento não poderia sentir maior apreço pela chuva e maior prazer pelo seu aparecimento. É claro que nas primeiras vezes vai gostar da chuva pelo seu efeito; mas passado algum tempo, o gosto pela chuva e o gosto pelo seu efeito já se confundem, e o leitor dará consigo a admitir, sem problemas, o quanto gosta de chuva! Puro condicionamento clássico. O processo que rege o condicionamento clássico é o mesmo processo que rege a metáfora: as qualidades de uma determinada coisa são transferidas para uma outra coisa, sem que a primeira e segunda coisa se misturem ou se transformem. Neste segundo exemplo da chuva numa zona árida, as qualidades que estão presentes nos efeitos que a precipitação traz a uma região que passava por um período de seca são transferidas para a própria chuva; o indivíduo, que começara por gostar dos efeitos gerados pela chuva, começa, a pouco e pouco, a gostar de chuva em si mesma. No caso da socialização com crianças, as "qualidades" associadas aos pedaços de comida especial (prazer degustativo, satisfação de necessidade primário e efeito de raridade) são associadas à presença da criança; é claro que o cão não passa a ver a criança como um gigante pedaço de fígado; ele passa a ver na criança um previsor ou indicador de coisas boas, tão boas quanto o são dez pedaços de fígado cozido. Se, entretanto, todas as experiências com crianças resultarem numa brincadeira calma e prazerosa, tanto melhor; mas a forma mais fácil, directa e segura de garantir um conveniente condicionamento clássico a crianças é feita com comida. Quanto mais especial, melhor. 
A grande diferença entre o condicionamento operante e o condicionamento clássico é que o primeiro diz respeito directamente à acção do cão e às suas consequências, enquanto o segundo diz respeito ao ambiente que o rodeia e às associações que possam surgir. Primeiro erro a evitar: não devemos achar que é possível colocar um dos tipos de condicionamento em suspenso, e trabalhar apenas segundo as leis do outro. Ambos estão sempre a actuar. O que pode acontecer é apenas nos concentrarmos, em termos práticos, num deles, claro; mas o outro está sempre a trabalhar em simultâneo. Por exemplo, quando ensinamos o nosso cão a sentar, trabalhamos dentro do quadro do condicionamento operante, reforçando  positivamente todas as boas tentativas (ou castigando positivamente as más tentativas e reforçando negativamente as boas); mas não podemos evitar que haja, ao mesmo tempo, algum tipo de associação a decorrer, por exemplo, se o ensino do 'senta' estiver a ser agradável para o cão, e nesse momento estivermos a usar óculos de sol, e se repetirmos várias vezes o mesmo exercício (sempre agradável para o cão) usando sempre óculos de sol, a sensação de prazer ou agradabilidade inerente ao exercício é transferida para os óculos. Ou seja, mesmo sem querermos ou disso termos consciência, estava a acontecer um condicionamento clássico ao mesmo tempo que trabalhávamos dentro do quadro do condicionamento operante.
Um grande problema que despoleta o surgimento de mitos como aquele enunciado na primeira parte surge quando nos esquecemos (ou simplesmente não temos noção) de que os dois tipos de condicionamento estão sempre, sempre a agir. Por exemplo, se quero associar a presença de outros cães a coisas positivas usando comida (condicionamento clássico), não me posso esquecer de que, se der comida quando o meu cão estiver a ladrar, poderei estar a fazer essa associação, mas também estarei a recompensar o acto de ladrar aos outros cães (condicionamento operante). Justamente por isso é que convém começar a trabalhar a associação pretendida com uma distância de segurança, de forma a que o nosso cão não comece, de todo, a ladrar, evitando que reforcemos um comportamento indesejável. Da mesma forma, se o meu cão teve um comportamento desadequado perto de uma criança, eu poderei castigá-lo (condicionamento operante) de forma a tentar que essa acção não se repita; mas não me posso esquecer que tal castigo vai ficar associado à presença da criança (condicionamento clássico), tanto mais associado quantas mais vezes se repetir o processo. Retomando: um dos maiores motivos que faz com que interpretemos muito mal certos procedimentos de treino tem a ver com a forma como negligenciamos que os dois tipos de condicionamento estão sempre a actuar. Sempre. Normalmente, o tipo de condicionamento desconsiderado ou esquecido é o condicionamento clássico. As pessoas (sobretudo os treinadores) parecem  extremamente focadas em controlar as leis do condicionamento operante, recompensando "o bom" e castigando "o mau"; e tal obsessão impede que os horizontes da educação de cães se abram; tal obsessão impede que as pessoas aprendam o que é o condicionamento clássico e aprendam a utilizá-lo na educação dos seus cães. E este tipo de engano tanto se pode aplicar a donos e treinadores que usem reforço positivo + castigo negativo quando àqueles que se concentrem no reforço negativo + castigo positivo. O problema, aqui, não é de método. O problema tem a ver com o desconhecimento que há em relação ao condicionamento clássico e à forma como os cães obedecem às suas leis.

segundo passo para desmistificar o mito de que o uso de comida não serve para tratar de casos de agressividade é, portanto, o seguinte: compreender o que é o condicionamento clássico, não confundir as suas leis com as leis do condicionamento operante, entender que tanto o clássico quanto o operante estão sempre a actuar e, por fim, saber as formas de usar as leis do condicionamento clássico a nosso favor e a favor da boa aprendizagem do nosso cão.

(continua)

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