segunda-feira, 17 de junho de 2013

Desde pequenino

"Oh, que pequenino. Ainda é novinho, não é?"
"Sim, fez ontem três meses e está a começar a vir à rua. E o seu, que idade tem?"
"Ah, aquele tonto ali já tem 4 anos"
"E costuma vir sempre para aqui para o parque? É seguro trazê-los para cá?"
"Sim, sempre que posso, vimos cá. Isto por cá é tranquilo. Durante o dia às vezes o guarda vem chatear para pormos a trela, mas ao finalzinho da tarde junta-se aí um grupo engraçado e é vê-los a correr desalmadamente."
"E não há problemas? Há para aí uns patos, e a rua é já ali."
"Oh, não. O importante é que o nosso cão venha sempre quando o chamamos."
"Ah sim?"
"Sim, é preciso é habituá-los desde pequeninos a andarem sem trela. Se não o fizermos logo, quando ele for mais velho não vai saber andar sem trela e pode fugir quando o soltar."
"Ah, pois."

Os meses que separam o dia de hoje do dia em que ouvi esta conversa retiram alguma da exactidão das frases que foram efectivamente proferidas então. Em compensação, as vezes que já ouvi conversas similares dão-me a segurança de estar a transmitir a estrutura e a ideia de base de uma conversa deste tipo.

O que se segue a esta conversa? Nas semanas posteriores, o expectante dono do indefeso cachorro torna-se frequentador habitual do parque e solta o seu amiguinho sempre que pode. Afinal, o cão daquele simpático senhor com que falara há dias respondia muito bem às chamadas do dono. Além disso, já tinha ouvido mais pessoas a afirmar o mesmo; no mais, só faz sentido que assim seja, já que toda a gente sabe que é desde pequenino que se ensina o menino. E, por mais que não fosse, as primeiras experiências correm muito bem: para surpresa do renitente dono, o seu cão, solícito, vem ter com ele sempre que ele o chama para ir embora ou quando se está a afastar um pouco. Dias passam e o confiante dono já anseia pela hora de voltar para o parque e encontrar os novos amigos do seu expectante cachorro que tratarão de brincar com ele e cansar o pequeno terrorista que, desde que frequenta o parque, rói cada vez menos coisas em casa e já quase não reclama por atenção. Quanto ao dono, entusiasmado, repara que tem cada vez menos fendas nas mãos, agora que as agulhinhas que as provocavam conheceram novos depositários. 
Passaram-se umas semanas e o altivo dono já não passa sem a happy hour do parque, para onde corre depois do trabalho, e onde convive com os seus novos companheiros, com os quais costuma falar, com cada vez mais propriedade, acerca dos benefícios que traz ao seu confiante cão este novo hábito. Aliás, os temas de conversa começam a ser cada vez mais variados, à medida que os donos, desembaraçados, já se tratam pelos nomes próprios e já não por "dona do Bob" e "dono da Lady". Em ordem inversa, os cães começam a conhecer-se bem demais e procuram outras fragrâncias e novas aventuras. O hábil dono não parece apoquentar-se; desenvolveu já um assobio personalizado que traz de volta o seu renitente cachorro. "Não é preciso ser muito forte, basta um pequeno silvo".
Não fosse o facto de o sol estar, agora, mais radiante à hora do encontro habitual, e nem teria dado para perceber que já se tinham passado uns meses neste novo hábito. Um novo frequentador aparece com o seu novo cão. O solícito dono não tarda em passar-lhe o ensinamento do parque: "tire-lhe a trela; é preciso que seja desde pequenino". Não há como enganar: todos os presentes, de uma forma ou de outra, parecem confirmar a receita, ou não estivessem ali tranquilamente com os seus respectivos cães, a quem nunca tiveram de fazer muito mais do que tirar a trela desde pequeninos. Aquilo que nunca ninguém se lembrou foi de perguntar pelos ausentes, aqueles que foram deixando de aparecer. 
O cachorrinho de há uns meses entretanto havia-se transformado num entusiasmado adolescente. Pudera: a cada dia que passava ia descobrindo novos e novos cheiros, e ia percebendo as delícias que o aguardavam longe do seu dono e dos outros cães, cujos cheiros sentia todos os dias, e cujos comportamentos, em boa verdade, já começavam a aborrecer o altivo adolescente. O hesitante dono, moderando o vigor do silvo e intercalando-o com algumas palavras de ordem (que uma incógnita convicção lhe garante que o significado será compreendido pelo seu cão, à distância), vem a encontrar o seu desembaraçado cão junto de um arbusto cujo interesse o descuidado dono não descortina. Agora, já próximos, a chamada é retomada; o cão, hesitante, aproxima-se de um frustrado dono, que, ao mesmo tempo que repreende o seu amigo, se lembra de que ele deve ter entrado "naquela fase em que o cão testa o seu dono". "Aí é? Aceito o teste, meu menino".
E o "teste" continuou nos dias seguintes. Por cada falta à chamada, uma repreensão cada vez mais determinada do intolerante dono. Mas, por cada chamada não atendida, o hábil adolescente vê reforçado o seu comportamento de explorar um novo arbusto.
Os outros começam a notar que o abatido dono já não aparece todos os dias; e sempre que por lá aparece, já não conversa muito, pois o teimoso quadrúpede insiste em afastar-se cada vez mais. Amanhã, e depois, decidiu não aparecer; "na próxima semana volto lá". Demoraram, afinal, duas semanas. O cauteloso dono pondera os perigos de voltar a soltar o seu cão. Mas, ao mesmo tempo, lembra-se que tem de ser mais teimoso, o dono. Volta lá, e encontra um grupo já um pouco diferente; "uns vão e outros vêm, que engraçado." Depois de umas semanas sem grande convívio social, e depois de meses a conviver sempre com os mesmos amiguinhos, voltou a aprontar uma nova: o intolerante canídeo não foi muito à bola com um novo conviva. Embrulharam-se. Enquanto uns relevavam o caso, o envergonhado dono pune exemplarmente o seu companheiro: "o que é que lhe teria passado na cabeça para agir assim depois deste tempo todo?", perguntaram-se os dois. Obviamente, cada novo cão estranho torna-se sinónimo de perigos imprevistos; por cada um que se cruzasse no caminho, o cauteloso cão avisava-o para não se aproximar, contudo, ao mesmo tempo, o implacável dono segue castigando esses avisos. "Estar perto de outros cães e perto do meu dono não traz nada de bom", começou a pensar um agora envergonhado pré-adulto, pouco solícito a novos encontros. Pior do que tudo, a comunicação entre o dono infeliz e o confuso cão não floresce. 
Entretanto, havia lido acerca da necessidade de treinar o seu cão para que ele viesse ter até si, ao mesmo tempo que ouvia algo sobre ter de demonstrar quem era o líder para obter o mesmo resultado. O confuso dono, embora equacionando a possível imprudência que havia cometido desde o início, não deixou abater o seu espírito prático: "a verdade é que, de todos os cães que vejo no parque, nenhum foi lá muito treinado, e todos eles vão quando os donos os chamam; o resto são teorias...". Entretanto, o implacável terrorista havia voltado a estar um pouco insuportável em casa; "pois, não o tenho levado ao parque, para correr". Voltaram ao parque; mas desta vez sem tirar a trela. Insuficiente. Era preciso correr. E correram. Mas, por muito rápido que fossem, o grupo - sempre diferente, mas sempre o grupo - continuava ali por perto, e o frustrado corredor só pensava em estar junto do grupo. Notava-se; sempre que a volta passava por lá perto, notava-se. Na cabeça do dono, o seu cão queria juntar-se aos demais; para o seu cão, infeliz, aquele espaço e aquele grupo significavam liberdade. Dois dias depois, de tanto se notar, o dono volta a soltar o seu cão, embaraçado pela forma como o mantinha  atrelado, e cansado de tanto correr para cansar o seu cão. O seu cão, radiante, não consegue controlar bem a sua alegria. Brinca e corre. Depois, já só corre. E continua a correr. Descuidado, sai do parque. O indefeso dono não consegue gritar alto o suficiente, nem para evitar que o seu cão entre na estrada nem para alertar o condutor. 

Para saber o desfecho do cão, recupere-se o adjectivo usado para descrever o dono quando começou a deixar de frequentar o parque diariamente. Pois é, teve de ser. E desta vez, o dono deixou de aparecer no parque, não por uns dias, mas para sempre. Para os outros, este passou a ser um dos ausentes, isto é, um dos exemplos que não são levados em conta. Lembra-se da falácia da amostra invisível da semana passada? Pois, os nossos heróis farão parte dessa amostra, e sempre que alguém procurar exemplos do que é que resulta e não resulta, esse alguém só vai ter acesso à amostra visível. 

Logo porque os cães lá do parque nunca tiveram nenhum treino e andam bem sem trela, isso não significa que isso seja o correcto, isso não significa que isso vá durar para sempre, e isso não significa que isso vá resultar para si. Pense sempre que não tem acesso ao conjunto de pessoas a quem a coisa correu mal. 
Uma vez mais, educar um cão é como um jogo de sorte. Pode sempre acontecer um imprevisto em qualquer situação; mas treinar e gerir o ambiente ajudam a voltar as probabilidades a nosso favor. Nosso, do dono e do cão.

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