domingo, 16 de junho de 2013

Leitura

«Eu acho que essa guerra dos métodos de se educar um cão não faz sentido. O que importa é ler o cão e aplicar os métodos que se ajustem. O que importa, meus amigos, é ler o cão.»

Confesso que esta ideia de que é preciso ler o cão me causa bastante comichão. E não é que eu ache que seja mentira. O que me irrita na expressão tem mesmo a ver com a verdade, com o tipo de verdade que é expressado. Em rigor, a ideia de que é preciso ler o cão é um truísmo. Puro e duro. Não me passa pela cabeça que alguém no mundo possa recusar essa ideia. No entanto, ao enunciá-la, estamos automaticamente a pressupor que alguém no auditório recusa ou desconhece essa ideia. Está-se, implicitamente, a postular a existência de alguém que pudesse contra-argumentar:

"Não, senhor. Não é preciso nada ler o cão. Aplica-se a chapa 4 do treino e acabou, qual ler o cão qual carapuça". 

Os truísmos têm este tipo de efeitos retóricos. Deixam antever que existe no contra-arguente uma posição contrária àquela expressa no enunciado-truísmo. E, como esse enunciado é, enquanto truísmo, necessariamente verdade e, sobretudo, aceite por todos, o contra-arguente é tido como incauto por não aceitar essa verdade tão evidente. Em rigor, esse contra-arguente nunca disse que não aceitava essa evidência; mas não precisa dizê-lo, pois os enunciados-truísmo fazem-no por ele.

Ora, quando, numa discussão em que alguém defenda um determinado método de treino canino, alguém se sai com a pérola de que é preciso ler o cão, o que implicitamente se está a vincar ou sugerir é que esse tal método de treino não olha para as singularidades de cada cão e aplica os mesmos procedimentos para todos os cães. O que está a sugerir é que o ideal é ir tentando vários métodos distintos para ver qual se ajusta ao cão em causa. O que essa pessoa ignora (ou propositadamente quer ocultar) é que dentro de um mesmo método existem várias formas possíveis de se proceder, diversas velocidades de actuar, distintas ferramentas a usar, diferentes formas de motivar. Não é preciso sair-se do universo do método escolhido para se atender às singularidades de cada cão. 

Normalmente, quando um truísmo é formulado, ou o seu "autor" é ignorante na matéria em causa, ou tem intenções sofisticas de induzir a audiência numa dada conclusão, ou, inocentemente, não se apercebe do grau de evidência e banalidade da sua afirmação. Seja qual for a razão, a verdade é que o truísmo da leitura do cão deixa que passe em claro algo que é profundamente importante e frequentemente ignorado: a incompatibilidade dos dois tipos de métodos existentes no treino canino. Sobre esta incompatibilidade, falarei em breve. 

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