segunda-feira, 24 de junho de 2013

As metamorfoses da comida, ou o "outro" condicionamento - parte I

«Pois, isso de se dar bolachinhas aos cães é muito bonito, e até pode funcionar para se ensinar o cão a sentar e a dar a patinha, mas o método do reforço positivo não se aplica a casos de agressividade; não podemos dar bolachinhas a um cão agressivo e esperar que ele fique curado...»

Tendo em conta que a visibilidade dos métodos baseados em reforço positivo é relativamente recente (embora os métodos não o sejam), o mito presente na epígrafe inicial é, também ele, relativamente recente. No entanto, é também um daqueles que mais fortemente se vem solidificando na comunidade de donos de cães. Ele é tão significativo que chega até a uma parte muito significativa de profissionais da área que, enquanto tal, teriam obrigação de estudar a fundo o tema e não se deixar levar por aparências. É certamente constrangedor quando um profissional de uma área de actividade qualquer é apanhado por uma das ideias mitificadas que existe nessa mesma área. Seria extremamente constrangedor para um médico acreditar que as gripes se apanham em correntes de ar frio, ou para um nutricionista acreditar que a laranja comida de noite é mortífera... Um treinador que simplesmente desconhece a forma como funcionam os métodos à disposição na sua profissão (tanto mais que, no caso, são apenas dois) é um mau profissional. Acreditar que o método que opera com base no reforço positivo não é aplicável em casos de cães agressivos é, simplesmente, acreditar num mito.
Grande parte das razões pelas quais este mito se encontra tão difundido tem a ver com o facto de a generalidade das pessoas e mesmo uma significativa parte dos treinadores de cães apenas levarem em conta um tipo de condicionamento: o condicionamento operante. Não obstante, existe um outro tipo de condicionamento, cuja formalização científica é, curiosamente, mais antiga e mais difundida na comunidade científica: o condicionamento clássico. Por outras palavras, apenas é levada em conta a dicotomia entre castigos e recompensas; para muitos, incluindo, muitos treinadores, tudo quanto há a fazer é recompensar o bom comportamento e castigar o mau comportamento. Poderá haver algumas técnicas para obter este ou aquele comportamento, mas, no fundo, tudo se resume a recompensar o bom e castigar o mau. Ora, se apenas existisse o cenário binário formado pela recompensa do bom comportamento e pelo castigo do mau comportamento, o uso de comida (ou de outra recompensa, embora, nos casos que serão expostos, o melhor exemplo de recompensa é mesmo a comida) apenas se aplicaria nos casos a recompensar; quando se tratasse de castigar, a comida não faria sentido e, consequentemente, o reforço positivo não se aplicaria. É este o pensamento que sustenta a ideia formulada na epígrafe inicial. No entanto, existem mais coisas que se podem fazer com comida para lá de ser usada como recompensa. Desde logo, podemos usar a comida para levar o cão a seguir a comida até realizar um determinado comportamento que se pretende ensinar; a isto chama-se luring (comummente se traduz como "isco" ou "engodo"; eu acho mais feliz a tradução "íman"). (Sobre a noção e a prática de luring, juntarei algumas considerações num "post" futuro.) Mas para além de forma de recompensa, e função de atracção (luring), a comida tem ainda uma outra importante função: a capacidade de realizar condicionamento clássico de forma conveniente e controlada. Um primeiro exemplo: imaginemos um cão com medo de aspiradores; durante uma semana, todas as refeições desse cão serão feitas próximas ao aspirador, começando com alguma distância no primeiro dia e, de refeição em refeição, o prato de comida vai-se aproximando do aspirador; aí por volta do segundo dia, o aspirador é ligado por breves segundos, e a cada refeição, vai permanecendo ligado por cada vez mais tempo. No final da semana, o cão ganhou confiança com a presença do aspirador. O que se passou foi puro condicionamento clássico. Como o aspirador se tornou presença permanente na hora de refeição, aquilo que o cão associa à hora da refeição passou a incluir também a presença do aspirador. É claro que o inverso também se pode passar: a hora da refeição poderia ser associada ao "terror" provocado pela presença do aspirador, e o cão pode ganhar aversão à comida ou à hora de refeição. Esta segunda hipótese é altamente improvável. Para isto se passar, teria de acontecer que o medo ao aspirador fosse mais primário do que a atracção pela comida. Por isso mesmo é que se começa com alguma distância, de modo a que o medo ao aspirador não esteja no seu auge. E por isso mesmo é que se usa comida no treino, pois é o reforço mais primário que existe. Pode haver quem conteste e diga que o seu cão é mais motivado por bolas, discos de frisbee ou por um jogo de tug. É preciso ter noção de que, neste caso, não estamos a falar de motivação para um comportamento, mas de condicionamento clássico. E no condicionamento clássico, diga-se o que se disser, a comida é o reforço mais primário que existe (partindo do princípio que quando se está a desenvolver algum trabalho usando condicionamento clássico, o cão não está a ser alimentado fora desse trabalho; seria o mesmo que usar-se uma bola como motivador num cão que passou o dia a correr e se encontra exausto).

O primeiro passo para desmistificar o mito de que o uso de comida não serve para tratar de casos de agressividade é, portanto, o seguinte: compreender que a comida não serve apenas para recompensar o bom comportamento. A comida serve, também, e sobretudo, como forma de accionar uma desejável associação entre um estímulo (no caso, aquilo que despoleta a agressividade) e algo de importância primária e sobejamente positiva (a comida). A comida serve para criar uma associação que faça com que algo que é visto como negativo pelo cão (algo perigoso, inseguro, desconhecido) passe a ser visto como positivo (seguro, indicador ou previsor de coisas boas).

(continua)


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