domingo, 9 de junho de 2013

Teimosia

"O meu cão é muito divertido e brincalhão, mas também é muito teimoso".

Quantas vezes já ouvimos frases deste tipo? E quantas vezes já as dissemos? E agora pergunto: quantas vezes é que duas pessoas que concordem que os seus cães são ambos teimosos se estão a referir ao mesmo comportamento em concreto? Os cães são chamados de teimosos por não se sentarem quando o dono "ordena", quando saltam para as visitas, quando não respondem à chamada, quando insistem em rebolar-se em terra suja apesar de advertidos para não o fazer, quando insistem em fazer xixi fora do sítio. Todos estes comportamentos são estritamente diferentes e as formas de lidar com eles são, também elas, completamente distintas. Tenho vários problemas em relação à forma como classificamos os nossos cães de teimosos, e um desses problemas tem a ver com isto. Dizer que o nosso cão é teimoso é, no mínimo, extremamente vago.
Certamente que já leram inúmeras vezes aquelas entrevistas-relâmpago em que uma dada personalidade responde a um questionário-tipo; e certamente também já repararam que muitas dessas personalidades acham piada em dizer que o seu maior defeito é ser teimoso. Claro que dizem isso: conseguem não parecer presunçosos e assumir um defeito ao mesmo tempo que fazem uso da vagueza do termo 'teimosia' para colocar uma qualidade no lugar do defeito. É um bocado isto que os donos fazem ao descreverem os seus cães: quando digo que o meu cão é teimoso estou, insidiosamente, a dar-lhe um traço de personalidade bem vincado, enquanto finjo que estou a ser crítico e imparcial. Só que, neste caso em concreto dos donos de cães, há mais um aspecto a ter em conta; por sinal, o mais importante: quando digo que o meu cão é teimoso estou a esconder a minha incapacidade em educá-lo, seja em geral, seja num comportamento específico. 
Causa-me ainda maior espanto quando não é a um cão (indivíduo) que se chama teimoso, mas a uma raça. "A raça X é muito teimosa!". Mas como é que se pode atribuir tão impunemente um traço de personalidade a uma raça? Uma boa parte dos equívocos que se geram em torno dos cães tem a ver com uma confusão que se faz entre comportamento e personalidade. Um exemplo. Os Beagle, os Basset Hound ou os Bloodhound são cães cuja forma de trabalho implica um intenso farejo rasteiro. Ao contrário de outro tipo de cães de caça cujo trabalho se passa mais acima, envolvendo outros sentidos para além do faro, e implicando uma maior comunicação com o dono, aquelas raças colocam tudo em suspenso quando sentem um cheiro e o perseguem rasteiramente, com o nariz colado ao chão. Ora, isto é comportamento. E é este comportamento que faz com que muitos donos muitas vezes chamem desesperadamente os seus cães sem que eles respondam. Achar que isto é uma questão de teimosia será justificar um comportamento com um traço de personalidade. Qual é o resultado desta confusão (seja ela propositada ou não)? A culpa daquele comportamento indevido passa a ser do cão e do seu "feitio", e nunca do dono. É que um comportamento treina-se, condiciona-se, ajusta-se, educa-se; a personalidade pertence ao cão. Muito conveniente para o dono, não? A cereja no topo do bolo surge quando ouvimos tanta gente desdenhar o treino de cães, acusando-o de mexer e retirar as características da personalidade do cão; estas acusações partem da referida confusão entre comportamento e personalidade, e o mais engraçado é que tais acusações, sob a capa de defenderem a individualidade e essência dos cães, estão a entregar-lhes uma responsabilidade que não lhes cabe e a condená-los a futuros castigos completamente injustos. 

Se der consigo a dizer que o seu cão é teimoso, faça um exercício mais sério e identifique com mais precisão qual é o comportamento que está em causa. Se for algo que o incomoda, então trate desse aspecto em específico, em vez de começar a antagonizar com o seu cão numa luta de vontades a ver quem é mais teimoso. Num recente vídeo, Ian Dunbar deu um excelente exemplo para que deixemos de uma vez por todas de achar que o nosso cão é desobediente e teimoso, e começar a compreender melhor o seu comportamento. Faça este exercício: chame o seu cão, na tranquilidade de sua casa, e, voltado(a) para ele, peça-lhe para se sentar. Ele sentou? Óptimo. Agora volte-se de costas para o seu cão e volte a dar a mesma instrução (use um espelho ou uma segunda pessoa). Ele sentou? Aposto que não (se se sentou, é porque já praticou isto anteriormente, o que só vem apoiar esta ideia); na melhor das hipóteses ter-se-á sentado após muita e muita insistência da sua parte. Acha que foi por teimosia? Não, pois não? Foi porquê, então? Embora coloquemos uma obsessiva ênfase no comando verbal, um cão "obedece" a uma instrução nossa por um conjunto de factores do qual a articulação de um pequeno conjunto de sons a que nós chamamos palavras ou comandos é apenas uma pequena parte; isto explica o cão sentar-se quando lho pedimos a dois metros dele, mas tenha mais dificuldades em fazê-lo quando estamos a 25 metros. Teimosia? Isso seria a mesma coisa que achar que um filho nosso está a ser teimoso porque sabe a tabuada dos 3, mas tem dificuldades na tabuada dos 8.


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