segunda-feira, 10 de junho de 2013

Ao natural

Como se perceberá ao longo dos textos que irei publicar neste blog, sou um defensor extremo do treino formal, ou seja, de uma forma ponderada, sistemática, metódica e, sobretudo, informada de educar os nossos cães, com ou sem recurso ao auxílio directo de profissionais (sendo que o facto de ser "uma forma informada de educar cães" implicará sempre um recurso, pelo menos indirecto, à sabedoria de bons profissionais). E uma das coisas que tentarei desconstruir neste blog será aquela ideia de que o treino formal  arrefece e artificializa a relação com os nossos cães.
No entanto, não consigo deixar de admirar bastante alguns cenários que vejo. Tal como aquele que ainda ontem vi. Um senhor (pelo que já percebi das vezes em que o observei, será habitante de rua) e os seus dois cães (longe de terem o aspecto mais prendado e cuidado do mundo) andavam pelo passeio aqui da rua. Os cães seguiam sem trela, e nunca saíam de um raio de distância de dois metros em relação ao dono, nunca tirando os olhos do dono por mais de 5 segundos, ao contrário deste que seguia sempre de olhos postos na rua, sem nunca orientar os cães, verbal ou gestualmente. O grupo chega junto de um cruzamento com semáforo. O dono pára, os cães param automaticamente ao seu lado. O dono parece entrever uma aberta, apesar do sinal ainda continuar fechado, e faz menção de ir atravessar a rua; um dos cães, sempre com olhos no dono, levanta-se ligeiramente (estava sentado), mas volta imediatamente a sentar-se ao ver o seu dono travar o ímpeto - um novo carro havia surgido na rua. Lá esperaram até o sinal abrir, e atravessaram todos em conjunto, seguindo o seu caminho parcialmente errático. Eu, do outro lado da rua, segurava a trela do meu cão, treinado diariamente, com plena consciência de que se largasse a trela, havia uma probabilidade significativa de o ver atravessar alegremente a rua para ir cumprimentar o trio do outro passeio, ignorando todos os perigos associados. 
A cena fez-me lembrar a forma como os cães dos "artistas de rua" se comportam. Sempre me causou espanto o facto de nunca ver um cão de um Perroflauta com qualquer tipo de problemas visíveis de comportamento, nem sequer aqueles menores e mais normais. A alta socialização com pessoas estranhas é facilmente explicável, na medida em que estes cães passam o dia inteiro na rua, normalmente em locais de tráfego intenso de transeuntes. Mas a forma como quase todos eles seguem o dono sem trela e sem desvios, a forma como vão ter com o dono quando este os chamam, mesmo que estejam a cumprimentar um cão novo, a forma, enfim, como irradiam uma serenidade invejável, tudo isso já se torna mais difícil de compreender.
Existe um conjunto de razões muito menos românticas que poderão explicar este fenómeno. A maior parte destes cães são adoptados pelos seus donos já com alguma idade, tendo já passado a fase da adolescência e de todos os problemas associados. Além disso, quando se juntam aos seus novos donos, estes cães, normalmente também eles de rua, já vêm com um alto traquejo de vida mundana, sabendo muito bem dosear os gastos de energia e recursos para as actividades que realmente interessam, ao contrário dos cães domésticos que passam sete oitavos do seu dia entre paredes, as mesmas paredes, e se tornam absolutamente doidos naquela horinha em que o mundo está a ver e a avaliar. Por fim, ao juntarem-se aos novos donos, estes cães compreendem que a sua nova condição lhes traz imensas vantagens, pelo que aprendem que seguir os seus novos amigos é uma regra de ouro que lhes permite ter uma vida com muito mais vantagens do que aquela que levavam até então. 
Contudo, estas razões não me satisfazem totalmente. Elas são boas em termos negativos, ou seja, explicam razoavelmente as ausências de alguns "maus comportamentos"; mas são insuficientes no plano positivo, ou seja, na explicação da forma como outros comportamentos são  apreendidos. Por exemplo, como explicar que a maior parte destes cães tenham uma chamada com um índice de fiabilidade muito superior a muitos outros cães que até já tiveram algum treino formal nesse sentido? Como explicar que alguns deles tenham "performances" de junto só ao alcance de alguns cães com imensas horas de treino? Como explicar que aquele admirável cão do relato inicial sente-e-fique (sit-stay) nos sinais fechados, não tendo havido, muito presumivelmente, qualquer treino respectivo? O vínculo com o seu dono é certamente muito forte, mas isso não é razão suficiente para distingui-los do normal cão doméstico, cujo vínculo com o seu dono não pode ser subestimado.
Tudo isto sempre me causa um inconfessado fascínio. Mas, depois, a chata da razão põe-se a trabalhar e chego, mais tarde ou mais cedo, à conclusão de que se trata de mais um caso daquilo a que chamo de falácia da amostra invisível (que é uma forma "apropriada" da falácia da amostra insuficiente). O nome é pomposo, mas explica-se com facilidade, felizmente. Perguntemo-nos: o que acontece se um desses cães que acompanham os artistas de rua tiver um comportamento desadequado? O que acontece se, por exemplo, por um segundo deixar de seguir o dono e decidir atravessar a rua para ir cheirar um cão que avistou ou ir averiguar um amontoado de apetecível lixo urbano?  Eventualmente, poderá ser atropelado e o pior poderá acontecer. Pode até ir no encalço de um gato em fuga, de um cheiro irresistível, de uma cadela com o cio, e, infelizmente, perder-se do seu dono. Pode morrer por comer algo que não devia na rua. E o que acontece a esta infeliz amostra? Desaparece, trágica e lamentavelmente. Permanece invisível aos olhos de quem poderia deitar-se a analisar o comportamento deste nobre tipo de cão. A referida falácia tem a ver com isto: temos apenas acesso à amostra de cães bem sucedidos, e a amostra contrária, a dos casos que correm mal, essa fica sempre remetida à condição de dado invisível
Não consigo deixar de ter um enorme fascínio por estes admiráveis cães, indiferentes à marca do antiparasita que usam e à percentagem de carne desidratada daquilo que comem, educados sem treino e serenos sem assertividade. Mas não nos podemos iludir; eles são apenas a parte sobrevivente de um conjunto de cães que estão expostos a uma prática perigosa. A outra parte permanece invisível, necessariamente. Para todos os efeitos, o dono que caminha na rua com o seu cão sem trela e sem treino, seja um perroflauta da Rua Augusta ou um yuppie das Amoreiras, está sempre a jogar com a sorte num jogo com probabilidades pouco favoráveis. Um jogo é sempre um jogo, e ter um cão é uma actividade de risco, mas treinar (educar) e gerir o ambiente é sempre a melhor forma de colocar as probabilidades a nosso favor. 

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