quarta-feira, 24 de julho de 2013

Remote Control

Um dos usos de uma coleira de choques eléctricos relaciona-se com o controlo das acções do nosso cão quando este se encontra sem trela. Nomeadamente, no treino da chamada. Um dos grandes problemas quando treinamos os nossos cães a responder à chamada tem a ver com as distracções que, sobretudo na adolescência, tendem a sobrepor-se a qualquer "valor" que esteja associado à chamada do dono. E, ao contrário do que acontece quando o cão tem um comportamento desajustado quando está à trela ou, simplesmente, quando está em casa ou num outro ambiente controlado e limitado, aqui, em campo aberto, é impossível corrigir o comportamento errado. A não ser que usemos uma coleira de controlo remoto. O princípio é básico: o cão, por qualquer razão, não responde à chamada; o dono ministra um choque à distância; o comportamento errado é corrigido e, como tal, tornado menos provável de ocorrer no futuro. 

Aparentemente, a coisa não tem falhas. Independentemente de o choque causar mais ou menos desconforto no cão, podemos sempre argumentar que tudo isso é um mal menor comparado com a eventualidade de o nosso cão ser atropelado ou perder-se. Mas este é um daqueles casos em que tudo começa por uma questão extremamente mal colocada. Na verdade, existe uma enorme petição de princípio a ocorrer aqui. Vejamo-la.

Perguntemos: qual a razão pela qual, para começar, andamos com os nossos cães soltos, sem trela, em campo aberto? Para exercitar e estimular os nossos cães; para eventualmente socializá-los com outros cães; para praticar algumas actividades impossíveis de serem realizadas com trela (frisbee, fetch, etc.).
Ora, todas estas actividades devem ser um fim em si mesmas. Como tal, o cão deve gostar delas; de outra forma, qual o sentido de praticá-las? (nota: os gostos dos cães não são imutáveis e irredutíveis; eles também são ensináveis, apreensíveis, trabalháveis). Se estivermos a promover um jogo de fetch (recobro, busca), partimos do princípio de que houve um período antecedente de aprendizagem do jogo e partimos, também, do princípio de que o nosso cão gosta do jogo. Como tal, ele deverá estar concentrado no jogo de tal forma que todas as distracções exteriores não o demoverão da actividade. Se ele se distrair a ponto de abandonar o jogo, isso significa que o ambiente está longe de ser o ideal e significa que não é seguro praticar tal actividade em tal local. Se não é seguro, não se realiza. Ponto. Procura-se outro local; treina-se mais o cão; não se solta o cão. Estas são as possibilidades. As únicas. A isto chama-se gestão das variáveis ou do ambiente. 
Colocar uma coleira de choques eléctricos no pescoço de um cão é uma acção que parte sempre do princípio de que andar com o nosso cão sem trela é uma inevitabilidade. Como é óbvio, não o é. Em vez de expor o nosso cão a uma liberdade com a qual ele ainda não sabe lidar e que o pode colocar em sarilhos, por que não seleccionar melhor as actividades a fazer com os nossos cães e os locais onde realizá-las? Em vez de libertar o cão e, com o pretexto de controlá-lo melhor, acoplar-lhe um instrumento de controlo remoto, por que não começar por ambientes mais seguros e ir, pouco a pouco, reforçando o poder da nossa chamada verbal?
Podemos, eventualmente, nunca chegar ao ponto de conseguir ter um bom controlo verbal do nosso cão em ambientes com grandes distracções, mas quem disse que isso é o objectivo? O objectivo principal de se treinar a chamada do nosso cão não pode ser outro que não o de fortalecer o vínculo que nos une. Se, eventualmente, nunca conseguirmos ter um cão confiável em "ambientes competitivos", paciência. Não faz sentido colocar uma coleira de choques no nosso cão só para que possamos pavoneá-lo, sem trela, pelo parque. É preguiça pura; é egocentrismo puro. Se está a considerar usar esta ferramenta para controlar os movimentos do seu cão, reavalie as suas prioridades: passa-se algo de tremendamente perverso na forma como está a constituir a relação com o seu cão. 

(O abacaxi coloca-lhe um exercício, em jeito de trabalho de casa e revisão da matéria dada. À luz do que o caro leitor já sabe acerca de condicionamento clássico e da forma como os cães criam associações directas através desse tipo de condicionamento, pense lá que tipo de lições e que tipo de consequências terão os choques eléctricos que o seu cão sofrerá quando junto de outros cães?)

7 comentários:

  1. Tenho um cão na minha zona que tem a infeliz sorte de ter um dono que usa este método para a chamada. Sinceramente não me aproximo dele, fujo a sete pés com a minha cadela assim que o vejo. O que é que me garante que o cão um dia não redireciona a frustração para cima da minha cadela, ou mesmo para cima de mim, se o sito senhor se lembrar de carregar no botão quando ele estiver ao pé de mim? E a associação negativa aos outros cães cada vez que o cão leva um choque a meio de uma interação?
    Essas coisas um dia terão de ser abolidas do mercado, e as pessoas que as usam terão de ser penalizadas. Ter um cão para o torturar com uma coleira de choques é acima de tudo, macabro.

    Já agora aproveito para deixar uma palavra de agradecimento pelos textos. Muito bons mesmo. Parabéns!

    Sofia Pimenta

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  2. Tenho a dizer que nos últimos dias comecei a considerar seriamente essa alternativa (antes disso tinha discutido o assunto com a treinadora do meu cão e posto essa possibilidade de lado, até ver). A situação é a seguinte: adoptei há 10 meses um cão estilo podengo/jackrussell de 13kg (desses como se vê muito nas matilhas de caça), que deve ter cerca de 7 anos; quando o encontrei, ele tinha feito pelo menos 20km entre o meio-dia e as 10 da manhã do dia seguinte, 10km para um lado, 10 km para o outro (foi visto nos dois pontos); vivo numa aldeia com bastantes estradas secundárias, matas, etc onde posso normalmente soltar o cão para trotar e usar o nariz (tenho também muito espaço em casa, mas não é a mesma coisa); last but not the least, uso aparelhos e canadianas e não temho forma nenhuma de o controlar à trela se for preciso (a menos que esteja sentada num scooter, coisa que uso muito para fazer o cão andar entre 30mn e 2h em estrada perto de casa). Para o ensinar a andar à trela e a responder à chamada, andamos há uns 6 meses numa escola de obediência, com grandes melhorias numa coisa e noutra (mas ainda longe da perfeição). Trata-se de um cão perfeitamente capaz de interagir com outros cães de rua sem agressividade, mas também igualmente capaz da maior agressividade (provavelmente só ritual) com cães presos, atrelados, etc. Há 3 dias encontrámo-nos num caminho que eu pensava deserto com 2 raparigas e um golden retriever solto, que o meu cão se precipitou para cheirar e pouco depois começar a ameaçar. Como é pequeno, as raparigas enxotaram-no e eventualmente voltou para mim, que entretanto tinha ido ao carro buscar a ração para o chamar. Mas de facto, pensei se não seria bom ter um controlo remoto para situações destas...

    IsabelPS

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  3. Olá, Sofia. Obrigado pelo comentário.

    Um dos grandes problemas é esse mesmo: um cão que leva um choque na via pública estará a fazer associações entre esse choque e os elementos que preenchem o ambiente naquela altura.
    Por muito triste que seja, pelo outro cão, o melhor mesmo é não passar perto dele...

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  4. Cara Isabel,

    normalmente, as pessoas recorrem a coleiras de choques com base num certo desespero materializado em confissões como "já tentámos de tudo". A verdade é que existe todo um mundo de coisas que, afinal, não foram experimentadas. Ainda.
    Conforme certamente já terá concluído, e já terá tido oportunidade de ouvir de outras pessoas, uma coleira de choques não funciona como um controlo remoto, literalmente. Como é óbvio, um cão não sabe que o choque que está a levar significa que deve voltar para a dona. Para que um cão saiba que o choque que levou tem como objectivo ou significação fazê-lo voltar para a dona, é preciso algum (muito) trabalho prévio de condicionamento para descodificar a "mensagem" que tal aparelhinho envia. Trabalho e tempo que poderá ser gasto no fortalecimento da chamada. Se em seis meses já nota assim tantos progressos, por que não investir mais tempo a aprofundar esses progressos?

    Veja este vídeo. http://www.youtube.com/watch?v=CBijBAA8M9U (vídeo com o qual vamos fingir que eu até concordo). Repare bem que aquele senhor (Michael Ellis, que sabe bem do que fala e que, apesar de tudo, tem imensos méritos na prática e na teoria de treinar cães) coloca o uso da coleira de choques como último passo no processo; e esse passo serve apenas para limar qualquer falha que ainda haja. Ora, para chegar lá, é preciso uma série bem consolidada de exercícios que fortaleçam a chamada. Ao invés, aquilo que acontece, invariavelmente, é que as pessoas procuram a coleira de choques como forma de queimar etapas, como forma milagrosa de comunicar com o seu cão.
    Não há milagres: o colar de choques, tal como qualquer outra ferramenta, não trabalha por si mesmo. E todo o condicionamento que é necessário para potenciar essa ferramenta pode e deve ser investido na comunicação com o cão.
    Para além do resto, o seu cão parece já ter alguns problemas de base no relacionamento com outros cães; o uso de coleiras de choques com outros cães por perto só vai fazer piorar as coisas. Disso não tenha a mínima dúvida.
    Por fim. Dadas todas as limitações, procure sítios seguros onde possa soltar o seu cão. Não são precisos hectares de terreno livre. Uma ou duas centenas de metros quadrados e algum objecto que possa, de alguma forma, atirar para o seu cão ir buscar, já será um bom começo para desgastar, estimular e divertir o seu cão. Como esse sítio é seguro, pode dar-se ao luxo de não gastar as suas chamadas em vão, e apenas chamar o seu cão quando tiver certeza de que ele virá. Se possível, fale um amigo ou um dogwalker que possa, de vez em quando, promover outras actividades com o seu cão. Há imensas coisas em que podemos pensar antes e em vez de equacionar razões para andar a queimar dinheiro, paciência, tempo e algumas células do seu cão com choquezinhos e vibrações.

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  5. Ah, Isabel:

    ao dizer isto «Como é pequeno, as raparigas enxotaram-no e eventualmente voltou para mim, que entretanto tinha ido ao carro buscar a ração para o chamar», está a denotar que, muito possivelmente, está a interpretar mal a mecânica da chamada.
    Em primeiro lugar, o seu cão deve vir ter consigo porque o chamou, e não porque tem biscoitos na mão. Os biscoitos servem para premiar o facto de ele ter vindo. Servem para criar associações entre vir à chamada e boas consequências. O seu cão, estando a 10 ou 20 metros, não vai saber se tem ou não biscoitos na mão.
    Em segundo lugar: quando treinamos a chamada, estamos a fazê-lo de tal forma que, naquele dia em que vamos realmente precisar que ele responda, ele virá. Não importa se temos ou não biscoitos ou bolas ou o que seja para lhe dar. No dia seguinte, quando voltar aos treinos, vai voltar a criar boas consequências para o comportamento de responder à chamada; e aquela única vez em que não recompensou o seu cão será esquecida.
    Já usei esta analogia aqui pelo blog, mas volto a usá-la: treinar é isso mesmo... treinar; é como um atleta olímpico, que treina todos os dias para a eventualidade de o exercício ser a sério. O problema é quando expomos os nossos cães a demasiados exercícios reais; nesses casos, não há treino que valha.

    Cumprimentos, e bons treinos.

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  6. Nunca me passou pela cabeça substituir o trabalho sobre a chamada por uma coleira de choques. E, de facto, o trabalho de condicionamento não deve menor com a dita coleira do que sem ela. Mas pensei que podia ser como aquilo que alguns treinadores preconizam, uma espécie de chamada de emergência, a utilizar em casos extremos (lá está, provavelmente não poupa trabalho nenhum!).
    Eu tento nunca chamar o cão se não tenho praticamente a certeza de que ele vem (em casa/quintal posso fazê-lo, e também no exterior quando ele já explorou o suficiente para recomeçar a me dar atenção espontâneamente). Mas às vezes engano-me...
    Quanto ao ir buscar a comida, foi um pouco uma tentativa de refazer a situação do costume, com o saco que ele conhece ao pescoço, onde ele sabe que está a ração que eu lho vou dar quando ele vem, etc. Mas claro que, neste momento, a recompensa não tem de perto nem de longe o mesmo peso que uma boa briga!
    Obrigada pela sugestão do vídeo. Provavelmente devo trabalhar mais em casa (em rigor "casa" significa quase 2000m2 vedados) antes de tentar sequer chamar o cão no exterior.
    Vou continuar a ler os seus textos com muito interesse!
    IsabelPS

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  7. Ter 2000m2 à disposição é um excelente (e privilegiado!) motivo para evitar riscos no exterior.
    A coleira de choques como último recurso, para além de implicar um árduo condicionamento à coleira e toda uma série de inevitáveis choques que não viriam em último recurso, implica também que o seu cão use a coleira sempre, pois nunca se poderá prever quando é que esse último recurso será necessário.
    O treino que usa este tipo de ferramentas pressupõe (ou, pelo menos, deveria pressupor) que o cão não tenha de usar a coleira quando já tiver cimentado o comportamento. A questão é que esta ideia de comportamento cimentado é uma ficção: um comportamento está sempre em consolidação.
    Para além disso, a construção de uma chamada fiável é possível de ser feita sem recurso a estes aparelhos. A inclusão de um último (ou penúltimo) passo inevitável no treino que inclua os choques como castigos é outra ficção. Eu compreendo a lógica, mas ninguém ainda conseguiu demonstrar que esse passo é inevitável. Aliás, a partir do momento em que existem inúmeros contra-exemplos que demonstram a não-necessidade desse passo para se ter uma chamada fiável, fica corroído, desde a base, o argumento que sustenta a inevitabilidade do recurso a uma "fase de pressão".
    No mais, soltar o cão em ambientes competitivos não é (salvo uma excepção muito especial que me escape neste momento) uma questão de vida ou morte, pelo que, se um cão (ainda) não responde bem à chamada, o melhor mesmo é não expô-lo a tais ambientes.
    Por último, acho que já se tornou perceptível, mas gostava de sublinhar o seguinte: o vídeo que lhe proporcionei serve apenas para ilustrar a forma como, mesmo aqueles que usam a coleira de choques, o fazem apenas após um largo período de reforço positivo de comportamentos correctos, e após um condicionamento controlado dos choques. Foi esse apenas o intuito.
    Em jeito de afirmação de posição: esse vídeo está longe de representar a forma como eu defendo que a chamada deva ser trabalhada. Sobretudo por algo que já disse antes: a fase em que se incluiu o uso dos choques está fundamentada numa grande ilusão retórica.

    Tenho todo o prazer em tê-la por cá.
    Cumprimentos

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