sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Centrão, terceira parte

(continuação)

  • Matilha e antropomorfização

Um outro traço muito presente nos cultores da ideologia do meio-termo consiste na estipulação da relação entre cão e seu dono como sendo estritamente hierárquica. Como tal, a promoção do dono como elemento ascendente nessa hierarquia será o passo mais importante para que todo o comportamento do cão se adeque às expectativas da família.
O texto que explana a "filosofia" de treino de Ed Frawley não poderia escapar a esta tendência. A terceira parte do texto (os pontos "Dogs are pack animals..." e "How to build respect and leadership") dedica-se a abordar uma pretensa constituição essencial do cão como animal de matilha e a estipular a forma de o dono conquistar a posição de topo nessa matilha.
Um dos problemas que Ed Frawley aponta é a constante antropomorfização que muitos donos fazem dos seus cães. Aliás, essa é uma crítica muito em voga, desde há uns anos. De facto, antropomorfizar o nosso cão é uma das formas mais rápidas de encomendar problemas na relação. Existem várias formas de antropormorfizar a espécie canina, mas todas elas, mais ou menos directamente, têm a ver com um revestimento moral dos nossos cães. Jean Donaldson ataca esta questão melhor do que ninguém: a nossa «visão distorcida dos cães é uma forma perversa de medir o quanto nós gostamos deles. Nós queremos que eles sejam espertos, moralmente "bons". (...) A nossa compaixão e consideração por outros seres está fortemente correlacionada com a nossa percepção do quão similares eles são de nós mesmos...». Ora, tendemos a antropomorfizá-los para sustentar e legitimar o quanto nós gostamos deles. São frequentes os artigos e estudos que tentam demonstrar o quanto os nossos cães são parecidos connosco. É como se procurássemos ver o máximo de traços em comum entre homens e cães. Travamos uma relação com uma outra espécie, e, em vez de procurarmos um enriquecimento proveniente de uma diferença essencial, andamos constantemente a descortinar humanidade nos cães e "canidade" nos homens. Quando alguém diz "quanto mais conheço os humanos, mais gosto dos animais", essa pessoa está a avaliar os animais em função de uma falha moral humana; os cães, espécie a quem este tipo de expressão é mais endereçada, são sempre avaliados em função de uma medida humana. "Olhe, olhe para aquilo, são tão bonitos... só lhes falta falar".
Antropomorfizar ou humanizar os cães é, de facto, uma razão forte para a criação de problemas. O que é curioso é que uma das formas de antropomorfizar cães consiste em defini-los como seres hierárquicos e, sobretudo, definir as regras e as determinações de tal hierarquia à luz das hierarquias humanas. A forma como muitos, hoje, se tentam demarcar de uma humanização dos cães é bastante irónica. Ridiculamente irónica. Para evitar tratar os cães como pessoas, transformam-se as pessoas em cães. A família lá de casa, que, até à chegada do cão, era uma família normal, humana, composta por pessoas, pai, mãe, filho, filha, essa mesma família, à chegada do seu novo elemento de quatro patas, transforma-se: deixa de ser família e passa a ser matilha. É frequente ouvirmos que todos os cães vêm as pessoas lá de casa como membros da sua matilha. Não vamos questionar esta afirmação; vamos fingir que ela é inquestionável e que corresponde à verdade. Ora, quando os nossos cachorros chegam a nossa casa, a nossa missão é dar-lhes a conhecer novas regras, dizer-lhes quais são os comportamentos admissíveis e quais aqueles que não o são. Se ele interage maioritariamente com os dentes, compete aos membros lá de casa dizer-lhe que existem outras formas de interagir e que tem de ter cuidado com os dentes, pois "nós não somos cães". Se o cão nos vê como elementos de matilha, não seria lógico que a nossa função fosse ensinar-lhe que, enquanto humanos, nós não formamos matilhas, mas famílias, e não temos hábitos caninos, mas humanos? Parece que talvez este pensamento não seja tão evidente assim, pois tanta e tanta gente opta por assumir que, daí em diante, a sua família será uma matilha. O raciocínio é: se o nosso cão nos vê como membros da matilha, temos de agir como uma, e temos de assumir o papel de líder da matilha. Se o objectivo é ser-se líder e fazer do cão um seguidor, não é extremamente perverso e irónico que determinemos o tipo de grupo que vamos formar em função do membro que se pretende ser o seguidor? Não é altamente risível que, com o objectivo de se colocar o cão no patamar mais baixo da hierarquia, o grupo que outrora fora uma família passe a ser uma matilha? Não é, enfim, altamente absurdo ambicionar formar uma matilha para que o único membro verdadeiramente canino seja o elemento mais inferior da hierarquia? 
Como é óbvio, tudo isto é retórica. Nenhuma família se transforma em matilha. A única razão pela qual se fala em estrutura de matilha é para legitimar uma série de procedimentos que, de outra forma, pareceriam pouco justificáveis. Procedimentos acompanhados do habitual "era o que a mãe do cachorro faria...". Os procedimentos, esses, continuam a ser única e exclusivamente humanos. Nenhum membro de uma matilha ou alcateia passeia outros membros numa trela. Numa matilha não se vestem roupas diferentes todos os dias; não se marcha ou trota em posição bípede; não se manda sentar, deitar, rebolar uns aos outros. Esta história da estrutura da matilha é retórica da mais vaga e inconsistente que podemos imaginar. Quem é que, verdadeiramente, age como um cão perante o seu cão?
É claro que, para sustentar uma ideia que é essencialmente inconsistente, o discurso correspondente não pode escapar a tal inconsistência, também ele. Veja-se o texto de Ed Frawley. Por um lado, sublinha o aspecto central da sua "filosofia" de treino: «Cães domésticos olham para a família com que vivem como a sua matilha. Se os humanos não se tornarem líderes da matilha, os seus cães vão avançar e assumir esse papel». Ora, é como se houvesse uma espécie de necessidade estrutural que exige que um líder se afirme; se não for um humano, será o cão. Tudo a bem da estrutura de matilha. É como se o cão até nem quisesse muito ser o líder, mas, como ninguém se assume, lá terá de ser ele. Bom. Por outro lado, Ed Frawley acaba por admitir que «os cães vêm a vida em termos de preto e branco, (...) vêm a vida em termos de "coisas que são boas para eles" e "coisas que não são boas para eles". (...) a força motriz na vida de um cão é o seu desejo de fazer coisas que os façam sentir-se bem. Os cães nunca fazem coisas para fazer com que o dono se sinta bem, eles fazem coisas que os fazem sentir-se bem». Ora, se fazem as coisas para se sentir bem, pouco se estarão importando com uma pretensa estrutura de matilha. E pouco interesse teriam em ter de assumir liderança perante uma matilha de bípedes com hábitos muito diferentes dos seus... Como conjugar esse carácter oportunista dos cães com uma necessidade intrínseca em pertencer a uma hierarquia normalizada e moralmente estruturada? Como harmonizar a ideia de que «os cães nunca fazem nada para agradar aos donos» com a ideia de que o imperativo número um na educação dos nossos cães é estabelecermo-nos como líderes do nosso cão? Pois claro, não há nenhuma conjugação possível. Qual é a necessidade de formarmos uma hierarquia de matilha e estabelecermo-nos como seu líder se admitimos que o cão não faz nada para agradar esse mesmo líder, e apenas faz as coisas que o façam sentir-se bem? Porque o líder pode providenciar más consequências para o comportamento do cão e, assim, controlar a acção deste? Mas isso é uma da componentes do treino de cães; não é necessário qualquer recurso a ideias mais ou menos elaboradas acerca de estruturas de matilhas e lideranças alfa. Tudo isto se trata apenas de mais uma inconsistência discursiva que é decorrente da inconsistência de ideias em que este discurso se apoia.
O grande problema deste discurso é que estabelece como pressuposto e axiomático um princípio altamente problemático, um princípio que é altamente problematizável na sua forma e na sua constituição. O grande problema é partir-se de um pressuposto inquestionável de que numa relação entre um homem e um cão se define, automaticamente, uma estrutura de matilha, e que toda uma série de problemas surgem quando o elemento humano do conjunto falha em reconhecer essa estrutura automática. Este é o tipo de princípios que não se adquire com a experiência. Existem duas formas de lidar com este tipo de princípios: (i) questioná-los criticamente e remetê-los para os enunciados fornecidos pela(s) ciência(s) que estuda(m) o tema; ou (ii) acreditar neles religiosamente e assumi-los como dogmas da nossa prática. Não tenho grandes problemas com a segunda via; por muito que nos custe admiti-lo, este é um procedimento que rege uma parte significativa da nossa vida. O problema é que, quando se opta por uma tal via e quando, ao mesmo tempo, se tenta erigir todo um sistema de processos e práticas que se fundam na ciência do comportamento e da aprendizagem, as incoerências vão começar a aparecer como cogumelos. Alguns deles bem tóxicos para o resto do sistema...

(continua...)


2 comentários:

  1. Assim se vestem também os discursos de religiões. :-)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Nem mais. Era um bocado isso que queria dizer neste último parágrafo.
      Não há mal nenhum nas profissões de fé e no seguimento dela. Desde que se assumam como tal. Agora, quando se pretende entrar num campo regido por leis científicas com base em pressupostos dogmáticos e acríticos, isso é que já é bastante inconsistente e perigoso.

      Um abraço transatlântico.

      Eliminar