sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Centrão, quinta e última parte

«...pois é, e também não podemos nunca estar por debaixo deles, senão eles pensam que mandam lá em casa».

Os meus olhos deverão ter saído das órbitas quando me voltei para ver qual o genial proferidor de não menos genial afirmação, e reparei que o mesmo era nada mais nada menos do que dono de um Dogue Alemão. As dificuldades por que aquela família não deve passar... apertar atacadores e apanhar coisas do chão estão absolutamente fora de questão. Pelo menos com o cão por perto. E imagino a altura em que as camas e sofás não estarão!

Ora bem, este último dos textos dedicados à ideologia do meio-termo vai incidir sobre as práticas concretas que fazem com que um dono se estabeleça como alfa e não como outra letra qualquer. 90% das vezes que este discurso é proferido, ele é revestido por uma essencial vagueza. Tudo é uma questão de se ser líder da matilha; mas tanto o que é isso do líder da matilha quanto a forma como um dono chega a tal ascético pedestal permanecem numa irremediável vagueza de explicações. Temos de ser calmos; temos de ser assertivos; temos de emanar uma energia de líder; temos de manter uma postura corporal de líder. Bom, a menos que o caro leitor seja fã de livros de auto-ajuda espiritual e navegue pelas hordas da New Age, estou certo de que a única reacção que estas expressões lhe sugerirão serão um valente bocejo de desprezo. Vago. Vago. Vago. E vago. Tais directrizes não querem dizer absolutamente nada de concreto.
E quando pedimos para que este discurso seja mais concreto, que brilhantes são as pérolas com que nos brindam.

Para tentar manter a seriedade no tema, recorramos à fonte que, apesar de tudo, ainda merece respeito na forma crítica, sistemática e frontal como tenta abordar o assunto do treino de cães (embora nem sempre o consiga).
Segundo o sistema Leerburg, um líder de matilha tem de comer sempre antes dos outros membros. Esta é uma das leis mais firmes e conhecidas desta "ideologia". Tanta e tanta gente pensa e pratica esta lei. O que acontece quando o líder da matilha não tem fome, mas já são horas de dar a comida ao canito? O líder da matilha entafulha-se com uma sandes improvisada só para manter a mensagem para o seu cão? Ou chegam umas bolachitas de água e sal? Um copo de água certamente não será suficiente, mas e se tiver umas vitaminas, será que o cão já considerará que está a comer depois do seu líder? Ou poderemos estar a cair no gravíssimo perigo de o nosso cão perceber que, afinal de contas, ele é que é o líder? O líder da pessoa que acabou de lhe dar a comida, note-se... E então o que acontece nas famílias que têm horários diferentes? Todos os membros da família devem estar acima do cão na hierarquia, certo? Então devem comer todos ao mesmo tempo, e o cão depois? Mas e quando um dos elementos não está? O filho que foi jantar fora, ou a filha que está em casa de uma amiga... Eles jantam por skype, para que o cão tenha a certeza que come depois deles? (Curiosamente, Ed Frawley resolve este problema facilmente: o resto da família não é líder do cão; só ele. Eu pergunto: ora, se só um membro da família é o líder, e se ser o líder da matilha é condição exclusiva para que o cão não se torne num feroz canino dominante, então não será agressiva e dominantemente que esse cão irá interagir com o resto da família?)
Outra coisa curiosa: o sistema Leerburg defende o "crate training" como forma de limitar as liberdades iniciais do cão ou cachorro que chega a nossa casa; e a forma de fazê-lo passa por alimentar o cão de cada vez que o queremos colocar lá dentro. Partindo do princípio que o cão não vai passar 7 ou 8 horas metido numa caixa-transportadora, ele vai entrar e sair várias vezes da "crate" ao longo do dia. Ora, imagine a quantidade de lanches que o caro leitor não vai ter de fazer para comer sempre antes do seu cão...

Uma outra lei: "não deixar ninguém fazer festas ou dar guloseimas ao meu cão; eu, enquanto líder, sou o único que o farei". Portanto, basicamente a ideia é eu ser o líder do meu cão por ausência de concorrência. Pelo sim pelo não, mais vale não deixar ninguém interagir com o meu cão, não vá ele gostar mais desse completo estranho que nunca viu na vida do que de mim. Isto é um líder firme e seguro? Epá, isto, no meu dicionário, é o sinal mais evidente de extrema insegurança.
A ideia, diz Frawley, é fazer do dono o centro do universo do cão. Isto até pode resultar sem problemas graves no caso de treinadores de cães e de outros que dedicam a quase totalidade do seu tempo para o seu cão. Mas para o resto dos comuns e mortais donos de cães, as horas diárias que o cão compartilha com o seu dono não são assim tantas; achar que uma pessoa que trabalha 7 horas por dia, dorme outras 7, ainda perde 2 horas em viagens, e ainda tem de fazer compras, levar e trazer o filho da escola vai ser o centro do universo do seu cão é sentença certa para que a vida e o ambiente desse cão sejam extremamente pobres. O donocentrismo é uma condição maligna de que muitos cães padecem; e muitos donos também. O mundo do seu cão não começa e acaba no dono - e ainda bem. Um cão com medo do camião do lixo não está a reflectir nenhuma insegurança do dono. O cão não é uma extensão do dono. Tem personalidade própria; tem gostos próprios; tem medos próprios. O dono pode é ajudar o cão a lidar com tudo isso. Mas não como se ele fosse uma extensão sua.
Impedir que o seu cão seja acariciado por estranhos, além de idiota em si própria, é uma ideia que vai resultar num cão muito mal socializado num futuro próximo. Depois quando o vosso cão morder a mão de uma pessoa que se aproximar, não estranhem... Nem reclamem: foi tudo a bem de se constituírem como o centro do universo do vosso cão. Haja boas prioridades.

Uma terceira, e mais conhecida lei: nunca deixar o cão passar primeiro nas portas. Frawley, tal como tantos outros, afirma que passar primeiro nas portas «embora possa parecer insignificante para nós, é coisa muito importante para um cão em termos de respeito». Eu pergunto: mas o que é que fornece tanta certeza a esta afirmação? Por que razão podemos afirmar que isto de passar em primeiro pelas portas é tão importante para um cão "em termos de respeito"? Este tipo de afirmações não se pode fazer sem que, pelo menos, haja acesso à contra-prova, ou seja, haja acesso ao comportamento que têm os cães que passam primeiro nas portas. Deduzindo que o próprio Frawley nunca tenha deixado os seus cães passar primeiro nas portas, para não correr o risco de ter de lidar, daí em diante, com um Führer de quatro patas lá por casa, eu de boa vontade poderei apontar alguns exemplares que passam nas portas primeiro que os donos, nomeadamente o meu próprio cão. Deixar um cão passar primeiro nas portas pode ser problemático ou mesmo perigoso; mas não por uma qualquer razão nebulosa ou mística. Se um cão sai disparado quando abrimos a porta de casa, isso pode causar problemas. Mas esses problemas estão directamente relacionados com a saída disparada pela porta fora; não tem nenhuma repercussão com uma pretensa relação hierárquica. Se o dono pretende algum rigor ou disciplina à porta, então ensine o seu cão a sentar e a esperar que o dono dê um sinal que permita que o cão passe na porta. Simples e directo.
Além de infundado e particularmente lunático, este princípio não é cumprido por ninguém. Desculpem lá, mas eu não acredito que alguém, quando chega a casa e tira a trela ao seu cão, ande sempre à frente deste quando ele vai beber água à cozinha. "Ups, o Faísca entrou na sala, e eu ainda estou no corredor; é melhor esperar um ou dois minutos antes de entrar na sala, senão ele pode achar que eu estou a entrar depois dele, e começa a achar que é o líder". Aliás, o próprio Ed Frawley não cumpre esta "lei": neste vídeo, no mínuto 3'42'', Frawley passa pela porta ao mesmo tempo que o seu cão (qual será a lição do cão?... será que estão empatados no grande campeonato da liderança alfa?), mas, logo a seguir, o cão passa muito primeiro pelo portão do exterior. Será que esta lei é apenas válida para as portas do interior? Ou será que aquele tipo de porta também conta e, a partir daquele dia, o Snickers se tornou o líder lá de casa?

Não nos podemos esquecer daquela que é provavelmente a mais clássica das leis da liderança de matilhas. Nos passeios, devemos sempre andar à frente ou, quando muito, ao lado dos nossos cães. Nunca atrás. Ou seja, os cães cujos donos praticam Canicross são sempre os líderes da matilha...
Aliás, o que é que determina a liderança? Se um cão passear 20% do tempo já pensará que é o líder? E se for 10%? "olha, neste momento o cão vai à sua frente, está a pensar que é o líder... olha, olha, agora não, já não pensa que é o líder...". 

Depois, claro, a lei das altitudes (ponto 8), exemplificada na epígrafe deste post. Diz esta "lei" que o líder, «enquanto humano, nunca deverá colocar-se a si próprio numa altura igual ou inferior à do cão». Eu juro que cada vez mais acredito que os inventores destas leis não vivem nem nunca viveram com um cão. Durante um dia inteiro, vai haver uma ou outra altura em que o dono vai ter de se baixar. "oh querida, tira lá o bolinhas aqui da sala, porque eu vou ter de apanhar as pilhas do comando que foram para debaixo do sofá". Mas o que é que esta gente acha que se passa dentro da cabeça de um cão? "uh la la, queres-me ver esta agora? O meu dono (ou melhor, ex-dono) está ali deitado no chão... então não é que eu sou o novo líder desta casa? As coisas vão mudar a partir de agora.. oh, não, o meu dono já se levantou, já não sou o líder... oh, calma, ele baixou-se outra vez, voltei a ser, oh, já voltei a ser um cão, novamente... foi bom enquanto durou". Enfim.

Por fim, o jogo do sério (ponto 2). Segundo esta lei, devemos olhar directamente nos olhos do nosso cão e ser os últimos a desviar o olhar; deve ser o cão a desviar o olhar em primeiro lugar. Basicamente, vamos jogar ao sério com o nosso cão. Quem ganhar é o líder. De quem é a mente infantil que inventa estas regras? Por que não alargar o espectro dos jogos? Fazer uma espécie de olimpíadas da matilha; o vencedor sagra-se o líder da matilha. Podemos começar por jogar à sardinha; depois, as escondidinhas, a apanhada, e não esquecer o jogo do lencinho. Tudo menos o Tug-of-war (ponto 18); isso é que não; se o cão ganhar, meu deus, aí ele fica a achar que é o super-alfa lá do prédio. Já agora, se este pessoal divertido se entretivesse a estudar comportamento canino em vez de andar a inventar coisas, iria saber o que significa o olhar fixo nos olhos de um cão: é um sinal invasivo e ameaçador. Quando olhar para o seu cão olhos nos olhos, fixamente e prolongadamente, não está a dizer-lhe "eu sou o teu líder"; está a dizer-lhe "eu sou uma ameaça". É essa a mensagem que quer transmitir para o seu cão? Não?, então não perca o tempo com baboseiras de revistinha e leia sobre comportamento canino real. O seu cão agradecerá.

A lista poderia continuar quase indefinidamente. Basta a imaginação querer. Se a mentalidade dos nossos cães fosse tal que se predispusesse a analisar cada um dos nossos actos como sinais de liderança ou submissão, eu colocaria aqui a questão pertinente que Jerry Seinfeld colocou já há cerca de 20 anos: como é que os nossos cães, esses seres hierárquicos e sempre atentos aos nossos sinais de liderança, verão a forma como nós apanhamos os cocós? Não parece uma atitude lá muito de líder da matilha andar com saquinhos a apanhar os serviços que os nossos cães fazem, pois não? Além disso, não conheço nenhum cão ou lobo que ande a apanhar os cocós dos seus "seguidores". Espero não estar aqui a dar ideias; não tarda, algum dos cultores da ideologia da matilha ainda se lembra de divulgar na sua igreja que apanhar cocós dos cães é sinal de submissão, e pronto, lá vão as nossas cidades voltar a ficar apinhadas de dejectos. Tudo a bem da estrutura da matilha!

Aquilo que é importante a reter é o seguinte: nunca, ninguém, em circunstância alguma conseguiu dar uma indicação concreta, sensata e com sentido de como é que o dono se estabelece enquanto líder da matilha. Nunca. Quando alguém fala nisto do líder da matilha, normalmente o discurso versa sobre medidas e ideias absolutamente vagas: transmissão de energias, estar calmo e assertivo, ter mentalidade de líder, etc. E quando se pede por algo mais concreto, algo que se possa, realmente, fazer, invariavelmente o discurso vai parar a este tipo de preceitos absolutamente absurdos e infundados. Comer primeiro do que o cão não vai ter absolutamente nenhum reflexo no resto dos comportamentos desse mesmo cão. Se quer que o seu cão preste mais atenção naquilo que lhe diz, trabalhe esse aspecto em específico. Se quer que o seu cão não puxe a andar à trela, trabalhe esse aspecto em específico. Se quer que o seu cão não ladre tanto, trabalhe esse aspecto em específico. A resposta é sempre treino. Não há outra hipótese, por muito atractivos e encantadores que sejam os discursos que promovem essas alternativas holísticas. 

O grande problema destas propostas é a sua incoerência lógica. Qual é o objectivo: ter um cão que obedeça ao seu dono. Como fazer: o dono estabelece-se como líder. Como é que se estabelece como líder: fazendo o cão obedecer. Ou seja: temos de dar sinais de liderança para sermos o líder para que o cão obedeça. E que tal ensinar ao cão qual é o comportamento pretendido? Quer que o seu cão sente quando lhe diz para sentar? Então ensine-o a sentar. Simples e directo. 
"Ah, mas o meu cão sabe sentar; só que não senta sempre; eu quero que ele sente sempre que eu lhe digo, e para isso, é preciso que ele saiba que eu sou o líder". Não, se o seu cão apenas senta de vez em quando, então não sabe "sentar"; não foi bem ensinado. O problema não está no facto de o seu cão não o ver como líder; o problema está no facto de lhe ter ensinado mal. Uma criança que saiba escrever, não saberá, necessariamente, compor um texto de duas páginas sem erros e com sentido. E se ela não o sabe não é por desrespeito aos pais ou aos professores; é porque ainda não aprendeu a fazê-lo. Para um cão, 'sentar' é o mesmo que 'escrever': sentar na sala, sem distracções e enquanto o dono lhe promete um biscoito é fácil, é como uma criança escrever o próprio nome. Mas sentar num parque com 20 cães à volta, isso já é coisa parecida a escrever um ensaio literário. Logo porque sei escrever, não quer dizer que consiga escrever um conto; logo porque um cão saiba sentar, não quer dizer que seja capaz de sentar em qualquer circunstância. Não é uma questão de liderança ou de respeito: é uma questão de treino. 
Já chega de desculpas para não treinar o seu cão. 

1 comentário:

  1. depois de me rir bastante, resolvi comentar. Não me leve a mal, não me ri de si nem do que diz mas sim da forma como desmonta uma série de conceitos que se tomam como garantidos na educação dum cão. Obrigado por me aliviar a alma e me fazer perceber que afinal, apesar de ser novata nestas andanças de ter cães, não estou a fazer tanto mal assim

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